o assessor

O assessor é o assombro do acessório
Nele assoma ensimesmado o estupor
Açaima cedilhas em cio sublimatório
Cita cedências em sol e si menor

Foi açor subiu alto ao promontório
Sobra-se em sílaba salobra sem cor

esticar a corda

Puxado violentamente pelo braço livre, o miúdo ficou ainda suspenso um instante, esticado entre o homem e a mulher. A um sacão mais forte, desprendeu-se da mulher, revolteou desarticulado e foi cair uns metros mais à frente no alcatrão.
O homem cresceu sobre o corpo amarfanhado e zurziu repetidamente. Depois, afivelou o cinto e subiu a avenida em passo largo.
O miúdo levantou-se para o colo da mulher e desapareceram ambos atrás do homem.
No passeio, os olhares parados seguiam as nuvens pesadas do fim-de-semana. O vento ameaçava chuva e o bairro recolhia-se, no espanto de subúrbio amaldiçoado, ao conforto do esquecimento e da estupidez humanas.

Recuperado dos princípios de 90

química inorgânica

hoje trouxe uma pedra para casa. dei-lhe um nome e ficou à sua sorte. desenrasque-se.

há vida nos objectos simples. quando apago a televisão ela fica a olhar a mesa, os livros, o jardim. não liga ao candeeiro. não se liga.

existe solidão mais dura que a do marco do correio? cravado até aos joelhos é tortura. desdentado e frio, aborrece. tem boca aberta à esquina das putas.

as canetas e os lápis apontam todos na mesma direcção. ao céu do tecto. ao parco horizonte. faço a contagem decrescente e ao zero acontece. as canetas borregam. os lápis desafiam. houston, temos problemas.

what if

1. cheg Lxboa tudo bem. cidade calma e por ai? bjs Victor
2. tudo OK Rick tratou tudo capt renault arranjou passes p todos Sam incluido tem cuiddo tou sem bateria bjs Ilsa

1. Bebé estou em Dallas vou agora sair dormiste bem? Recebeste recado meu assessor? não te preocupes depois amanhã volto Washgt bateria esta ir abaixo quero te muito teu John
2. querido john tenho senpre medo qd vais nessas visitas estou em casa telefona depois pois vou agora cabeliirero tenho filmagem tua sempre marilyn

1. Senhor capitão. Preciso de falr consigo. u Poder nao pode cair na rUa. Dei ordens GnR para não disparar. Epero por si. a minha bateria esta fraca Cumpts. MC
2. Senor Profssor vu ouvir q tem para dizer mas nã consigo aguentas + tempo a multiddao aqi no largo Cpt Maia

xxl

tragam-me um gordo numa banheira e demonstrarei generosamente o princípio de arquimedes. eu bem gostaria que isso tivesse passado pela cabeça da professora de física. mas seria uma experiência duplamente problemática. dantes tínhamos de suar para arranjar um gordo. um adiposo igual ao peso do volume do líquido deslocado. ora aí está. não produzíamos os suficientes. faltavam incentivos à gordura e o mais parecido era graxa a dar ao professor. nunca o vi mais gordo exprimia sinceramente a rara flacidez do tempo. mas eram tempos de escassez.

no liceu só havia um bolinhas por turma. quando muito dois buchas nas urgências após o cross. ou um peida-gadocha embaraçado no trampolim. isso era ter sorte. e nós sabíamos. nós cuidávamos da espécie como se protegida. julgo que as meninas também. uma banhas por cada dois nossos bafos-de-onça. um tipo sofria os seus untos. claro. as meninas. a ginástica. a risota por ir ao quadro. ou a lenta fila da inspecção militar. um património excessivo não compromete uma carreira. este comprometia. ou julgávamos que sim. ser gordo tinha vantagens. mas não tenho informação suficiente. sejamos honestos. obesidade pedia consulta ao dicionário. e nós não entendíamos de psicologia. nós éramos invariavelmente uns mete-nojos. uns trinca-espinhas. uns magricelas. gostávamos deles mas eles odiavam a humanidade. ainda hoje. ainda que mais magros do que nós. a memória é mais resiliente. a dos gordos de então. peço finalmente desculpa ao leitão. mas o nome ia-te a matar.

muito antes ainda o gordo exibia-se nos circos como as mulheres barbudas e as irmãs siamesas. agora os gordos fizeram um upgrade. no sentido inverso. agora disputam o ecrã das celebridades. célebres porque muitos. célebres porque imensos. como a apneia existencial de que emergem em sobressalto. que procuram? simplesmente livrarem-se de si próprios. ou pelo menos de generosas porções de si próprios. até serem apenas eles. até serem quase nada. uma pilha de nervos e ossos.
perder aqui é ganhar. nos pneus e na balança. menos é mais. na pulsação e na auto-estima. uma boa ideia para t-shirts. olho as presas do excesso que as habita. do horror que suscitam. das articulações que claudicam. subo à balança com eles. subimos regularmente ao cadafalso. contamos libras em percentagem. e gritamos as magras calorias à incompetência do treinador. temos de perder para ganhar. temos de matar para viver. temos de mostrar para não esconder.
são os meus recentes heróis. heróis xxl. como os compreendo. como eles comem e calam. e tudo porque querem ser bigger than life.

polpa

hesito em comprar livros electrónicos. é um abuso chamar-lhes livros. não envelhecem. não amarelecem. não arquivam o adn de um cabelo loiro. não são livros. q.e.d. e eu gosto que cresçam à cabeceira da cama. às vezes torres gémeas. outras de pisa. torres e torres erguendo e um arco ogival de polpa e circunstância.

duelo

no andar de baixo a rapariga ouve bee gees desde manhã cedo. chega. quero fazer a sesta. então respondo com verdi. ela saca supertramp. eu atiro guilherme tell. só cá faltavam os village people. mudo para a pesada. toma lá wagner que já almoçaste. silêncio. apuro o ouvido. acho que ganhei. mas não. agora são os deolinda. ó meu deeeus. os deoliiiindaaa. estou sem argumentos. rápido. uma ideia. uma ideia. mas onde está o raio do cêdê? raio da mulher da limpeza. ah grande natália. ora embrulha. o amor é veeeerde veeeerdeee. batem à porta. boa tarde. sou do censos 2011 e gostava de. mas essa é a voz da minha tia.

in e out

visito uma amiga no temporário ninho de cucos. é a primeira vez que compareço num retiro deste género. mas apenas vejo pardais e asas feridas. silenciosos. a televisão murmura uma espécie de canal panda para crescidos. barras nas janelas dão para um dia cinzento. para paredes cinzentas. dorme uma mulher debaixo das festas do marido. outro esconde o rosto nos braços cruzados sobre a mesa. às vezes levanta o olhar. onde está o nicholson? não há índios por aqui. tranquilo volta aos seus braços. às suas barras. um quadro branco revela os humores do grupo. o grupo faz autocrítica. hoje estou cool. ontem foi blue. amanhã uma cor qualquer. mas é uma escala de zero a não sei quantos. vejo alguns zeros em roupão de treino. zero menos a minha amiga. falamos e rimos baixo. uma hora mais cedo e teríamos jogado às cartas. fico alarmado de repente. sei que não me distingo dos restantes. podiam trancar-me aqui por erro administrativo. por absurdo. não tenho provas do que sou ou do seu contrário. provas que me deixem lá fora. felizmente aproxima-se a hora do jantar. estou menos tenso. despedimo-nos e lanço uma boa-noite à sala. alguns zeros respondem. a enfermeira marca o código na porta. espero que não se engane ou toca o alarme de evasão. saio apenas eu. o breve conde de monte-cristo. saio enfim para a claridade do pátio molhado. espero que a minha amiga descubra a senha de saída.

gorjetas

havia o graxa no barbeiro e um dia a amizade acabou.

o graxa hoje é só caspa. olha de esguelha. come as garinas. recolhe com a chuva. recolhe os escarros. cuspinha os sapatos. vende cordões.

orbita o barbeiro. gira a cadeira. roda a torneira. ajeita cabeças à força de espelho. faz-lhe perguntas mas sou eu que respondo. também escova a gorjeta.

versões beta

retomando  a passagem à sala. onde íamos?
lúcio entrou na sala à procura dos cigarros e...
ok já estou a ver. à procura dos cigarros e tal e encontrou a mulher no sofá a folhear uma revista de mod...
peço perdão. a mulher está na cozinha. não pode passar à sala sem ultrapassar o marido.
ok ok. à procura dos cigarros e não os encontrou. berrou para a cozinha ...
peço perdão. regis...
onde meteste os cigarr...
peço duplo perdão. registo três ocorrências do verbo berrar nesta cena. queres rever as anteriores para substituição lexical?
está bem. não berra e volta à cozinha. desesperado voltou à cozinha.
peço perdão. registo duas ocorrências de desesperado nesta cena. sugiro retorno sem adjectivação.
então volta à cozinha sem adjectivo. mas com advérbio. pode ser? voltou zangadamente à cozinha e
peço perdão. não registo zangadamente no meu léxico bolonha três. tenho de rejeitar. sugiro variante. em virtude da crescente tensão da cena o marido pode sair para comprar os cigarros. a variante permite gerir...
sai para comprar os cigarros e não volta mais?
perdão? alerto para inconsistência. o plot matricial não admite esse fluxo. o marido desaparece quando surge a amante do passado. a amante tem de matar primeiro o actual marido.
ai é?
sim. o marido sai para comprar cigarros. a momentânea descompressão da cena permite gerir autonomamente a condição psicológica da mulher. recordo que a mulher está à beira de um ataque de nervos quando o marido sai da cozinha. a mulher desconfia que está grávida do vizinho.
tens razão. mas eu vou dar outra solução à cena dos nervos.
aceito. atenção. atenção. modo de verificação de plágio indisponível. nível de energia crítico dentro de dez minutos. activo modo de plágio tolerado de nível 1?
não. não. vais é carregar as pilhas e entrar em modo de hibernação. hiberna ponto 10. porra.
entrada em modo de hibernação dentro de 8 segundos. alerta. alerta. tens telejantar com  os teus sogros às oito. see you later aligator. pfffiiiiiuuu.
a merda desta versão beta está cheia de bugs de insolência. e pimbalhice. não há paciência. tenho de voltar à versão anterior. entretanto onde é que pus o raio do papel? porra. onde é que ela meteu aquela  resma de papel que me ofereceu nos anos?

(josé levantou-se do sofá  e foi à cozinha. a mulher na bancada folheava uma revista de moda)
então querido está a correr bem? não se esqueça de que temos telejantar com os meus pais. é preciso comprar telepizza. querido também se acabaram os cigarros. mas onde vai querido?

criar kallos

já ninguém apura a caligrafia. eu próprio me atrapalho com o que escrevo. é triste perder a arte. é triste garatujar sem alma. antigamente exibia-se uma boa letra com orgulho. não sei fazer mais mas faço isto. é a minha marca. a fama que transporto do ditado para a redacção. como uma prenda que não sei explicar. esqueçam a ortografia. vejam os meus pês e os meus dês. admirem os rasgões do zê maiúsculo como um rasto do zorro. o érre com argola de brasão. este éfe que dá um bigode a qualquer tê grande.
não é apenas esmero nem herança. não senhor. são centos de cópias e puxões de orelhas. cópias até à exaustão. reparem que tenho a língua de fora. um calo no dedo médio. tinta no calo e na bata. eu ensino quem quiser.

a senhora aí à frente está a rir? não acredita? venha cá. suba aqui sem vergonha. aplausos para esta senhora. como é o seu nome? muito bem. é também o da minha sogra aquela santa. ora agarre aí a caneta do meu assistente. a caneta para senhora por favor. assim. não lhe morde minha senhora. venha cá. o marido pode esperar. não é tão à ponta. com suavidade. suavemente. ora não querem lá ver. isto não é o pau da bandeira minha senhora. agora vamos enfiar o aparo no tinteiro. tinta boa. tinta portuguesa. tinta do cartaxo. o médico disse-me que vinho nem vê-lo agora só bebo de olhos fechados. sem afogar a caneta. sem afogar minha senhora. isso. menos tinta. menos tinta que a vida está cara e eu não tenho o rendimento garantido. bata na borda. na bordinha do meio. é para aliviar um pouco a carga. e agora devagar devagar para o papel. devagar. escreva o que quiser. pode deixar o seu número de telefone para qualquer emergência. ai se a minha mulher me ouve. ouve o metal raspar a fibra. o papel não se importa. faz impressão? mas é normal minha senhora. é normal. mas saia daí. depressa senão afoga o ponto final. cautela. cautela. nem tão fundo nem tão levezinho. a pressão certa sem vincar. e eu que passo as minhas calças todos os dias. e agora siga o pautado. isso. mudar de linha. mudar de vida como diz o outro. letra grande claro. letra grande como as que tenho no banco. a folha tem sede mas vá devagar. a pauta é o rego. o rego minha senhora. o regador é a caneta. tem de molhar outra vez. está a secar. está a secar. tem de molhar outra vez. oh minha senhora mas esta não é de tinta permanente. tem de molhar. ai há quanto tempo eu não molho o bico. vamos devagar. tinta permanente é outra coisa. isso é já liga dos campeões. tem de merecer essa honra. ah pois é. tinta permanente não é para todos. agora é poisar a caneta e deixar apurar. que está quase a levantar fervura. é descansar. é descansar. o aparo agradece. aplausos para a senhora. aplausos para o marido que já se quer ir embora. há mais alguém para agarrar na caneta?

(não por acaso joão da ega elogiou a caligrafia de dâmaso salcede. caramba. era o seu último refúgio de dignidade). 

pub

estive uma noite encerrado numa sala a ver publicidade. foram quatro ou cinco horas de imersão. em detergentes e coca-cola. contra a sida e a violência doméstica. por dificuldades de erecção e fome em áfrica. cada secção do meu cérebro foi esporeada até à exaustão. devo ter rido. a publicidade é boa nisso. devo ter pensado. a publicidade é menos boa nisso. devo ter digerido mal essa noitada. por isso ao dia seguinte recorríamos ao guronsan. naquela altura também éramos bons nisso.
não fujo ao lixo no intervalo dos filmes com desdém. regalo os sentidos e acautelo a memória. a publicidade é o que de melhor ficará depois de tudo o resto. depois de nós. digo melhor enquanto desempenho de ilusão. enquanto ilusão de ventura. enquanto ventura inócua. as novas bem-aventuranças para um futuro incerto. as músicas de reclames resistirão depois das faces que já não reconhecermos. das vozes que já não identificarmos. mas digo-o sem grande entusiasmo. a primeira razão é óbvia. não me vejo a cantar jingles num grupo terapêutico do lar. a segunda porque existe outra dimensão. e essa é civilizacional. porque emitimos seja o que for para o espaço. em matéria de radiofrequências somos incontinentes. micções nocturnas e diurnas em contínuo. uma humilhação sem fraldas. emitimos hitler e maria callas. emitimos saturno quinto e charles mason. emitimos rosebud e pol pot. o onze de setembro com glenn glould em fundo. a nossa irresponsabilidade vai longe. tudo isto saiu das nossas mãos e há muito que ultrapassou vega. hitler foi visto e ouvido por essas bandas. até responderam à jodie foster.  e possivelmente em bcc. adolfo pintor anda à boleia pela galáxia desde 1936. um rasto de setenta e cinco anos-luz de suásticas cósmicas. de outros artistas do género propagando-se à velocidade da luz. eis a verdadeira matéria negra em expansão. a par da pasta medicinal couto e do restaurador olex. a par do cruzar de pernas da sharon stone e das curvas de sofia. de rick a afastar-se de vichy mais o sargento renault. dos irmãos marx à vara larga numa noite de ópera. seria irónico se não fosse obsceno. uma vergonha para a família não saber lavar a roupa suja em casa. por isso força com o marketing de guerrilha. com as agências. força aos criativos. atulhem o cosmos de spots e teasers e slogans. irradiemos felicidade. milhões de cartas a garcias suspensos em neve carbónica. algures numa ladeira de silício. sob um pulsar ou um sistema duplo. várias dúzias de pacotes acima da radiação fóssil bastarão para divertir quartetos de olhinhos azul-cobalto. sempre esperando que não pestanejem de horror. agora sabemos que porreiro pá! se abeira de alfa de centauro. tenhamos esperança. pode ser que estejam em casa. publicidade, senhora. pode abrir? pode ser que abram a porta.

a propósito da líbia

voltando ao egipto. o egipto só me tirava o sono em vésperas de exames de história. já o tinha encontrado no technicolor dos dez mandamentos e na história do pim pam pum sobre a maldição da múmia. depois por outros sítios. nos segredos das pirâmides. no blake & mortimer. na morte no nilo. com o eça na inauguração do canal do suez. e muito cedo no conflito israelo-árabe. deixei de acreditar no menino jesus quando tomei conhecimento da disputa entre israel e os árabes. foi há muito tempo e temos envelhecido juntos. árabes e judeus. o médio oriente e eu. a minha descrença nos homens. 
o egipto agora acordou para o mundo. o mundo também acordou. é preciso actualizar o trivial pursuit. deitem fora omar shariff e o seu bridge à jivago. a dalida e o incêndio da biblioteca. nasser e o coro dos hebreus. o egipto veio gritar para a rua e para a cnn. tocaram a nossa costela egipciana. a praça  tahir é maior do que o largo do carmo. alguns procuram o capitão maia em cada tanque em riste. não sei se acordaram as múmias. não sei como se regulam estas cheias do nilo. talvez transbordem os crocodilos. talvez moisés seja rejeitado pela filha do faraó. vejam a história de bilal. uma nave de pedra paira sobre a cidade. dentro da pirâmide suspensa hórus de hierakonópolis é julgado por evasão. por heresia. por rebelião. é preciso evitar que hórus escape uma vez mais. o filho de osíris não pode descer novamente à cidade. nas vielas do cairo os descendentes de sem e de cam aguardam. mas talvez não saibam que ao deus tudo é permitido. até soldar-lhes próteses de aço às pernas. ou à cintura.

(escrito em 1 de Fevereiro)

o cerco

estou encerrado em casa há uma semana. desliguei o telemóvel e silenciei a campainha. corri todas as cortinas. tenho mantimentos para meses. espero que não me cortem a electricidade e a água. passo muito tempo a dormir. não sei bem se é de dia ou de noite. não ligo a televisão nem a rádio nem a internet. apenas ouço jp simões. da rua chega-me o som da passagem dos eléctricos e dos aviões. às vezes ouço vozes nas escadas e batidas na porta. são eles à procura. cheiro porque não me lavo. a barba cresceu. as unhas cresceram. uso o mesmo pijama desde a noite em que a rádio disse que tinha abarbatado todos os prémios nobel.

eu só escrevi um livro de duas mil páginas com uma frase em cada página. eu só libertei a energia limpa e abundante que encerra o mau hálito matinal. eu só resolvi a desavença entre o meu cunhado e o dono do açougue em frente. eu só misturei a farinha e o gel de banho que explodiu nos dentes do cão de loiça. eu só descobri um número primo que se ignorava por erro de impressão. eu só demonstrei mais eficientes os mercados em vésperas de lua nova.  

não sei que fazer com isto. eles estão à porta e apertam o cerco. se saio sou engolido pelo sistema. se me tranco em casa contraio uma entropia galopante. a minha mãe desejava secretamente que eu fosse cartuxo e o meu pai publicamente que eu gerasse otorrinos. nunca se entenderam. acabei estofador de inequações. criei uma seita que enxota com aforismos as senhoras que levam nutrientes aos sem-abrigo do beato. sou eu e o senhor alfredo da farmácia. somos o direito à fome.

comecei um dia a publicar num blogue. alusões vagas às minhas incursões. recebi um comentário por dia durante meses. eram todos do feijó. desconfiei de uma admiradora lésbica ou de um fanático às pernas. sem descartar o espião do terceiro direito. segui o conselho e protegi-me com spray para picadas. muni-me de pulseiras com hologramas. mudei de nome e de café. evitei o santini. forneci o número verde do corte inglês. saí de casa trajando de carteiro. não mais liguei ao lado errado do bife. nem aos telómeros das batatas fritas. tive esperança. sim. acreditei.

passou mais uma semana. a situação é insuportável. não tenho água nem luz. há bolores pela casa. aglomero cera nos ouvidos. ouço patinhas nervosas à porta. o arranhar das suas antenas. marte ataca. vénus em alinhamento. querem falar-me. beber as minhas palavras. tocar a minha fama. irradiar os meus píxeis. ando desesperado pelo corredor. estou doente de rebentos de soja e da cidra do cartaxo. procuro uma solução. quero sair mas não assim. demasiado fácil. não estou preparado. iluminação. iluminação. esgalho um soneto e enfio-o pela ranhura da porta. autografado. talvez os satisfaça. talvez me deixem em paz. talvez.

começar bem

Leitor, tu és imbecil. Leitor, vai comer no cu. Estas primeiras linhas não assegurariam por si só a imortalidade a uma obra e, pelos vistos, nem uma modesta entrada nos cem mais famosos arranques romanescos que é possível encontrar pela mão do Google. Aí há de tudo e pelas mais diversas razões: pela simplicidade e concisão, pelo achado, pela extensão. Poucas vezes, ao que parece, pela provocação.
Todavia, parece-me fácil bater toda essa gente, pois desconfio que tais listas resultam da selecção, enviesada, de romances já famosos. Ora aqui há batota. Fama atrai fama. Muitos autores medíocres e desconhecidos ficam assim de fora, por serem pouco lidos ou desdenhados. Falo da imensa classe média de escribas que, tal como as pequenas e médias empresas na economia, são o grosso do tecido literário mundial.
Leitor, não chegarei ao fim destas linhas sem mandar bugiar os tipos que impingem listas das primeiras linhas mais sublimes, como impingem citações e o anedotário dos grandes deste mundo. Encosta-se aos balcões das tascas gente mais inspirada que o mainstream dos canais culturais. Esse desafio escatológico, infelizmente, está por lançar, numa ronda pelos bairros, aos militantes da mini e da pevide. Ora diga lá como começava um romance. Algo do género, provavelmente, depois de retocado,

Só me mexo com o meu marido, dizia a puta imóvel debaixo de mim. Olhei para ela e percebi que não valia a pena protestar. Ainda por cima, já tinha pago e o chulo esperava nas escadas.


Ainda hoje não percebo por que me descuidei tão estrondosamente no elevador apinhado com aquele peido homérico e não argumentativo, dos que fazem rir com gosto a plateia no escuro do cinema. Mas percebi o seu efeito retardado na sorte da entrevista para primeiro emprego, dez minutos mais tarde, precisamente com um dos ocupantes ultrajados e hoje meu assistente de direcção.

De todos os imbecis machos do meu condomínio, gente dos serviços como eu, dos engravatados e grunhos de duvidosa classe média com que me cruzo de manhã e baptizo cerimoniosamente, entre dentes, a partir da taxonomia privada que elaborei cuidadosamente durante anos, de toda essa mole enjipada e enjoada de si própria que joga squash, foi a Cuba e tem casa no Alentejo, enfim, de todos os alfas e betos que coabitam uns escassos milhares de metros cúbicos de betão envolto por jardim, cerca e segurança privada na enésima encosta de Lisboa, coube a este vosso amigo que vos escreve e que vos agradece por ser lido, a mim precisamente, a glória dúbia de se tornar, de uma assentada, overnight, zás, sem espinhas, marido cornudo, pai de lésbicas, irmão de gay, director despedido e proprietário de um bingo clandestino. Ora oiçam a minha história.

Há também modos famosos de acabar, mas esses não vou agora procurar no Google. Até porque, francamente, meus caros, estou-me nas tintas. Lamento apenas que não tenham sido tuas as últimas palavras, Rhett Butler.

seca verde

isso da pegada ecológica começa a enervar-me. apanha-se como um tique e não há regresso. a espécie quer diluir-se numa parte por milhão. a minha espécie quer ser homeopática. que raio de fading out. temos de pensar em grande. fazer em grande. ir em grande. e cuidar da arqueologia do futuro. ninguém respeitará uma civilização morta de gnomos verdes. merecemos uma entrada decente na enciclopédia galáctica. eu faço o que posso. eu quero deixar uma pegada na lama. e escrever cem números primos no foz côa. ou nas ventas dos gigantes de páscoa. depois multem-me se quiserem. eu enxergo um gigantesco aquaparque no grand canyon. lojas de conveniência mesmo por cima do pólo magnético. olho à volta e vejo toda a gente em bicos de pés para não importunar o planeta. ai separa o papel. ai a pilha que baba. ai as luzes da sala. ai há blu ray no comércio justo. isso. não puxes o autoclismo e queixa-te que cheiras mal dos pés. não te acanhes. pinta de vermelho o parque dos glaciares. talvez se veja da lua. talvez sirva à coca-cola. seca o mediterrâneo. aterra os alpes. tira as rolhas dos vulcões. não me venham é pedir para ser discreto. foi para isso que deixámos de chapinhar na lama? que combatemos o herpes labial? que inventámos o vinil e o paris-dakar? ora bolas. um bigode na mona lisa. a amazónia para o paint-ball. colossais falos pneumáticos ao longo da falha de santo andré. ao menos pensarão que tínhamos alguma piada.

sorrir sempre

o senhor da loja da esquina anda metido com uma mulher. corre no bairro que não é a sua, a mesma que aos domingos o ajuda a fechar a semana de pés frios e consignações. a mulher anda com má cara. ele não. o senhor da esquina anda leve, cada vez mais leve, e passa o tempo aos segredos com o telemóvel. atrás do balcão mora um homem feliz.
ora isto tem consequências. está à vista que se desleixou na arrumação da montra, quando antes seguia religiosamente o calendário dos dias de qualquer coisa que se vendesse bem. por isso se engana no pacote de jornais que me entrega, nas contas e nos trocos. os clientes resmungam, pagam e saem para a concorrência. não há livro de reclamações. mas há pó nas prateleiras mais altas. à entrada, resistem os anúncios de gente que dá explicações.
o senhor da esquina começa a perturbar o bairro, o delicado equilíbrio da rotina do bairro. saímos da zona de conforto e aguardamos a tragédia. o café em frente, a cabeleireira em frente, a tasca da outra esquina. o comércio está apreensivo. a junta de freguesia já foi informada. mau sinal: o homem dos frangos deixou de meter conversa entre assaduras. e eu, resignado, já não comento as capas de gente famosa. se digo que está frio, ele sorri. se digo que vai chover, ele sorri. atrevo-me a dizer que se afundou a torre de belém. e ele sorri.

falem-me dos transaccionáveis

o meu tio aos 89 anos lembrou-se de perguntar por que razão tinha cada vez menos dinheiro no banco. por que razão havia mais gente desempregada e os espanhóis atravessavam a fronteira para vender cá deste lado o que os do lado de cá não produziam. coisas destas tão simples que um comentador despacha em cinco minutos no telejornal. depois dos 80 qualquer esclarecimento de balcão confunde um homem que acaba de colher a azeitona. à beira dos 90 qualquer falha dos mercados estraga o dia já arruinado por um poço que desabou. o meu tio tinha razão para estar abespinhado. com a azeitona no lagar a 26 cêntimos. com o gato que lhe mataram por maldade. com a minha tia a abalar de si própria ninguém sabe para onde. mas ele sabia onde eu trabalho. sabia bem o que perguntava. inclinou-se para a frente como só os moucos se inclinam quando querem ouvir-se a perguntar. um esgar de sorriso velho e malicioso. à beira de uma epifania. ora vê lá se sais desta. não o disse mas pensou. eu quis sair mas é pela porta. pedir um chá. comer bolachas moles. saber da última excursão a fátima. fiquei imóvel no papel do sobrinho estimado. então descruzei as pernas. inclinei-me também e pedi que repetisse. perguntei porquê só para ganhar tempo. para rebuscar tralha acumulada no mais escuro sótão de ideias feitas. repetiu a pergunta já com o eco da minha tia a ajudar à missa. tu é que sabes disso. a gente estamos velhos. a gente estamos sem cabeça. eu estupidamente disse que não estavam velhos. que tinham cabeça. que eram avós de woodstock. e senti-me velho de repente. eu não sei nada disso. não o disse mas pensei. que seria mais fácil explicar as regras do sudoku a um camarão cozido. a falência das grandes narrativas a um corta-unhas. piedade meu tio. piedade minha tia. eu sou uma correia da engrenagem. mentalmente ajoelhei aos pés de todas as virgens negras. uma mola inofensiva do sistema. um acessório do marketing do euro. o fórum de davos numa travessa de alcântara. o portugal dos pequeninos numa nota só. eu não tenho culpa. eu não sou tóxico. eu sou o subprime de mim mesmo. eu não roubei nada. eu nunca fui o retorno absoluto. a dívida soberana. os futuros dos amanhãs que cantam. eu reprovo os mercados e as agências de rating. as agências de rating são uma invenção da oprah e do jon stewart. eu escarro nos swaps de cds. nos derivados de wall street. eu evito a city e o nasdaq. os soros e os madoffs que se concubinem. eu sou o vosso sobrinho. estão a ver? o vosso sobrinho. vão ao banco e espanquem o gerente. eu ajudo. levantem o dinheiro. a tia que faça um lifting. o tio que vá a um spa. gozem a velhice. vejam o goucha. elejam o cavaco. vão a fátima e a nossa senhora de lurdes. caguem na prudência. adiram ao catching up. uma rave no meio do faval. um rap por conta das geadas. mas não me culpem. eu sei. nascidos pobres para morrer pobres. nascidos brutos para morrer brutos. nascidos tios para este sobrinho. ó tios meus. ó minha santa ignorância. já viram o frio que está?

o livro

os meus avós não acreditavam que os homens tivessem ido à lua. eu era miúdo e eles eram do campo, sentados à mesa como nota de rodapé do júlio dinis. não soube como provar-lhes que não tinham razões para duvidar. nessa altura, eu acreditava na televisão. eles não. hoje, penso que também deveria ter desconfiado. embora por razões diferentes. mas não seria o que sou agora. descrente.

passei muitas horas estirado na cama a ler a bíblia. lia uma versão para jovens, não para a criança que eu era. linguagem mais simples, menos temperada, mas fiel ao espírito original. as histórias dominavam-me. sobretudo as do antigo testamento. tinha pesadelos. tinha uma pilha para ler debaixo dos lençóis. tinha dores nos joelhos. crescia depressa, dizia o médico. faltava à escola de manhã por sonhar demais.

sonho que ando com a eva pelo jardim sem pensar na costela dorida. sonho que odeio o caim e o outro. sonho que adormeço à chuva com noé. é bom adormecer com chuva ao fundo. não são tão maus os irmãos do bom josé? os vilãos. a quadrilha selvagem. e david? david manda para a morte o general para lhe ficar com a mulher. não faças isso, ó david. não te vás embora, ó general. acho irritante a sabedoria de salomão, o presumido. o vaidoso. e a baleia devoradora de todos os jonas do mundo. como pesa a queixada de burro com que sansão matou mil inimigos no afeganistão. bolas. chego atrasado à abertura do mar vermelho, ao canal do suez. cumprimento o eça. bom dia, arafat. provo um canapé. é maná. sabe bem. job continua pobre ponto final. sabia? coma maná. olha o zacarias. o daniel. olha o césar monteiro. olha um profeta louco em cada esquina com os olhos brilhantes de asilo. gosto das saras e das rutes. gosto da raquel. todas mães aos setenta. todas barrigas de aluguer do médio-oriente. tudo velho, barbas brancas, sandálias calcando pó. o sol. a areia. o deserto antes de david lean. olha os carros todo-o-terreno do faraó. estão longe. estão cada vez mais perto. mais perto o yul brynner rapado atrás dos judeus. o nazi sua ao sol atrás do indiana de chicote. e chega charlton heston no seu melhor. traz as tábuas e a winchester. viva columbine e o bezerro de ouro. querem outro dilúvio? corte. yoda estende o dedo e separa a luz das trevas, as águas das terras, os peixes das aves. corta. miguel ângelo hesita colado ao tecto. o papa aproxima-se com gota e vai censurar o dedo brilhante de spielberg. corte. apaga-se a sarça, recolhe-se o mar, afoga-se moisés. corte para as torres gémeas de babel. um avião sobrevoa o templo. o santos dos santos. os sacerdotes apontam o voo picado. corte. bush ouve as crianças na sala de aula. corte. césar monteiro continua às voltas no principe real. negro. genérico. luzes. acordar. imprimir.

mira técnica

fui eleito sem saber ler nem escrever. não prometi nada, não disse nada, não pareci em lado algum. o meu tempo de antena foi uma seca de mira técnica. não me deixaram pôr o amor é um pássaro verde num campo azul no alto da madrugada. foi pena. fui apenas eu.

bebo e vou às putas. bato na mulher e nos filhos. peido-me no elevador. não passo facturas. pontapeio gatos. chego atrasado. roubo lápis ao patrão. sou a soma das partes. toma! sou o pé-de-atleta do país.

agora tenho prioridades. estabilidade. cooperação. excelência. austeridade também. despedi assessores. toma! vou de eléctrico. toma! despedi a sogra. toma! encurtei o hino mas com desgosto. arrendei o palácio. um achado. aos chineses. aos indianos. e aos romenos. expulsei os romenos. ora toma! há quem lhe chame sentido de estado. eu chamo-lhe férias de mim próprio.

vinde a mim conselheiros de estado. sim marceneiro de alcoutim. sim engraxador da baixa. sim coveiro de abrantes. sim sim sim. zé do telhado também. sim senhor. e o diogo alves do aqueduto fica bem. a severa que se despache. o pinheiro de azevedo já cá canta. e a pilar sem o nobel. tem o eusébio em linha? ó meu deus, o eusébio da silva ferreira! o eusébio! ele que aguente, ele que aguente. diga que estou em reunião. diga que recebo embaixadores. não. não. diga que me vai interromper no chuveiro com a carla bruni. enquanto o marido foi aos coches. diga isso. sim. sim. aos coches. ao museu dos coches. diga isso, porra! desligou?

de outra maneira

E se tudo acontecesse de outra maneira
Toscas mãos agora asas
Coração atrás dos olhos
A pele diáfana de azul

Digo mundo no primeiro choro
Peço licença para morrer

E se fosse paródia e não a física
Pedra largada a subir
Água partida no copo
Luz calcetada nos passeios

Digo incêndio que me arrefece
Escrevo enfim com chuva negra.
Imagina a questão mais estranha para não passares por banal. As perguntas frequentes são para gente da mesma condição.

Escolhe a fila mais lenta para celebrares uma opção errada. Se te enganares, sabes que a escolha foi acertada.

Lança-te na grelha do metro para saíres do outro lado na televisão. Mas é preciso que antes te resumam a cinzas.

Ouve o não dito, lê o não escrito, recebe o não dado. É mais fácil dizeres o que não queres, escreveres o que não sabes, dares o que não podes.

Faz uma última vez. Mesmo que seja a primeira.

vidro embaciado

quando era miúdo e chovia, julgava que chovia em todo o mundo. e a miúda dizia que fechava os olhos e os outros ficavam às escuras. e a velha benzia o azeite atrás da porta para afastar o mal.
depois vieram as suspeitas e deixei de ir à igreja por ter tropeçado num livro ao acaso. juntei-lhes a ciência que explica a estrela de belém, a ascensão das nuvens, a génese do arco-íris. cresci.
uma noite sob o céu estrelado continua a perturbar-me. o voo planado dos pássaros sossega-me. o sol lembra-me que sou pó de estrelas. o mar inquieta-me. cresci.
o encanto da poesia é como agarrar areia com as mãos. os grãos que restam são o menino e a sua irmã. na rua passa um burro triste e o homem atrás. chove. o nariz arrefece no vidro embaciado. há musgo nas mãos. o espelho faz de lago. a farinha lembra neve. as vozes são distantes. parece natal. parece que nasci.
o verbo verto à nascente
a rua deslizo em luz
o riso rimo água ardente
a pedra fico onde a pus

verbo falir

estou quase falido. devo ao meu prédio, ao meu bairro, a vagos primos na província. preparo-me para dever ao país.
vivi seis meses acima das minhas possibilidades. comprei um gato e mandei arranjar os estores da cozinha. o resultado está aí. hoje vivo à beira da clandestinidade e nem sequer odeio especialmente o status quo. mas colou-se-me um rating que sinceramente não mereço.
evito o vizinho a quem cravei couves e cebolas, o dentista que amoleci na consulta ao molar esganado, o tasqueiro à esquina que me fiou uma tarde de imperiais. o lingrinhas dos jornais acena-me com uma expressão estranha. o do talho manda o filho no meu alcance (sorte ser obeso). e o casal dos frangos, contemplando as peles crestadas, talvez sonhe ver-me chiar sobre brasas eternas. resta-me o barbeiro, que entretanto foi aparar o queixo ao s. pedro.
um actor de fama duvidosa que não no bairro tem-me adiantado euros em troca de porções assustadoras da minha colecção de bd. troca directa. expediente doloroso. espero não chegar ao corto maltese, aos meus sete por cento psicológicos. não aguentaria tal perda de soberania.
espreito desolado o cartão de crédito e o cartão de débito. estão coçados e praticamente inoperacionais. valem escandalosamente menos do que o plástico em que estão impressos. vejo pelo canto do olho a pilha de contas sobre a secretária enquanto descarto amigos do facebook a quem telefonar. ou sou eu próprio removido como quem espreme um ponto negro e relaxa. que faz um artista sem subsídios sem o número de telefone da ministra da cultura? inscreve-se num partido? faz short selling?
comecei a plantar ervinhas no terraço e espero pacientemente o trabalho da natureza. tão lenta, a natureza. tão lento o meu génio. ninguém me paga pelos blogues que recheio até de madrugada, pelo diário que vou organizando sobre a minha dieta do mundo. alguém aspirava a entrar no supermercado e comprar tudo o que precisasse com a sua beleza. mas ser beat em s. francisco era certamente mais fácil do que alternativo em campo de ourique.
que fazer meu deus? a amazon continua a tentar-me com ofertas especiais. e a miúda do spa fronteiro não deixa de me fazer massagens de olhinhos quando o meu ego se cruza com o dela.
olho o picasso esgazeado que se encosta ao canto coberto de pó. é provavelmente o mais contrafeito dos contrafeitos picassos esgazeados ao canto de qualquer chafarica. mas a moldura é de bom gosto e deve valer um swap decente na baixa. vou tentar a sorte. que diabo. saco a moldura, pontapeio o picasso para debaixo da cama e abandono o meu tê-um. odeio o sol que me encandeia. odeio esta venda irrevogável de activos. mas amanhã quero ir ver o benfica à luz e oferecer uma lembrança difícil ao meu gato. o meu companheiro de infortúnio precisa urgentemente de ser capado. a mim também me custa. mas não foi isto que abril prometeu. nem o euro. bolas. quero comprar o jornal mas não posso. quero engraxar os sapatos mas não devo. resolvo então mandar parar o táxi.

reino fungi

habita-me um fungo. a minha unha do pé pertence doravante ao reino fungi.
como me aconteceu não sei. mas suponho que esta colónia oportunista vai resistir ferozmente à guerrilha que lhe montei. entretanto não me sentirei tão só.
consulto a informação disponível em rede. lembro matéria que há muito esqueci nos bancos do liceu. as hifas, os esporos, os micélios. todo um admirável mundo discreto que ora nos regala o paladar ora nos atormenta de comichão as virilhas. os fungos mais os vírus e as bactérias são bons companheiros. vivem connosco há milhares de anos e possivelmente herdarão a terra. como as baratas, essas crocantes fugidias. uma coisa é certa: os fungos trabalharão afincadamente na nossa remoção. o planeta é um vastíssimo ecoponto.
a minha onicomicose, digo isto sem vaidade, é das mais resistentes paródias de fungos. a unha perdeu a cor, aumentou de espessura e um filão quase marfim atravessa-a longitudinalmente. há aqui um abstraccionismo inesperado. monocromático. há talento a meus pés.
comprei para os devidos efeitos um antifúngico, meio quartilho de acetona e pó branco para o interior dos sapatos. tudo legal e sem comparticipação. o estado assobia para o lado quando se trata de fungos e outros parasitas.
o verniz medicamentoso entrega-se num odor forte e eficaz. domina a hora de deitar. é pena ser transparente. é pena as cores da moda ainda não chegarem tão baixo.
preparo um novo morticínio. desarrolho o frasco e encharco generosamente o pequeno pincel. debruço-me qual gulliver sobre uma lilliput aterrorizada. espalho o verniz com devoção e a língua de fora. não farei prisioneiros. ai dos vencidos.

letra pequena

morreu mais um capitão de abril.
um capitão devia morrer em abril. não em janeiro. ao frio de janeiro jaz morto e arrefece.
alguns ainda percebem o título no jornal, no despacho da agência. alguns ainda.
um dia capitão e abril não farão sentido na mesma frase.
um dia abril será escrito com letra pequena.
abril já é escrito com letra pequena.
as palavras começam a ser pequenas.
as palavras pequenas.
como abril.