criar kallos

já ninguém apura a caligrafia. eu próprio me atrapalho com o que escrevo. é triste perder a arte. é triste garatujar sem alma. antigamente exibia-se uma boa letra com orgulho. não sei fazer mais mas faço isto. é a minha marca. a fama que transporto do ditado para a redacção. como uma prenda que não sei explicar. esqueçam a ortografia. vejam os meus pês e os meus dês. admirem os rasgões do zê maiúsculo como um rasto do zorro. o érre com argola de brasão. este éfe que dá um bigode a qualquer tê grande.
não é apenas esmero nem herança. não senhor. são centos de cópias e puxões de orelhas. cópias até à exaustão. reparem que tenho a língua de fora. um calo no dedo médio. tinta no calo e na bata. eu ensino quem quiser.

a senhora aí à frente está a rir? não acredita? venha cá. suba aqui sem vergonha. aplausos para esta senhora. como é o seu nome? muito bem. é também o da minha sogra aquela santa. ora agarre aí a caneta do meu assistente. a caneta para senhora por favor. assim. não lhe morde minha senhora. venha cá. o marido pode esperar. não é tão à ponta. com suavidade. suavemente. ora não querem lá ver. isto não é o pau da bandeira minha senhora. agora vamos enfiar o aparo no tinteiro. tinta boa. tinta portuguesa. tinta do cartaxo. o médico disse-me que vinho nem vê-lo agora só bebo de olhos fechados. sem afogar a caneta. sem afogar minha senhora. isso. menos tinta. menos tinta que a vida está cara e eu não tenho o rendimento garantido. bata na borda. na bordinha do meio. é para aliviar um pouco a carga. e agora devagar devagar para o papel. devagar. escreva o que quiser. pode deixar o seu número de telefone para qualquer emergência. ai se a minha mulher me ouve. ouve o metal raspar a fibra. o papel não se importa. faz impressão? mas é normal minha senhora. é normal. mas saia daí. depressa senão afoga o ponto final. cautela. cautela. nem tão fundo nem tão levezinho. a pressão certa sem vincar. e eu que passo as minhas calças todos os dias. e agora siga o pautado. isso. mudar de linha. mudar de vida como diz o outro. letra grande claro. letra grande como as que tenho no banco. a folha tem sede mas vá devagar. a pauta é o rego. o rego minha senhora. o regador é a caneta. tem de molhar outra vez. está a secar. está a secar. tem de molhar outra vez. oh minha senhora mas esta não é de tinta permanente. tem de molhar. ai há quanto tempo eu não molho o bico. vamos devagar. tinta permanente é outra coisa. isso é já liga dos campeões. tem de merecer essa honra. ah pois é. tinta permanente não é para todos. agora é poisar a caneta e deixar apurar. que está quase a levantar fervura. é descansar. é descansar. o aparo agradece. aplausos para a senhora. aplausos para o marido que já se quer ir embora. há mais alguém para agarrar na caneta?

(não por acaso joão da ega elogiou a caligrafia de dâmaso salcede. caramba. era o seu último refúgio de dignidade). 

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