o cerco

estou encerrado em casa há uma semana. desliguei o telemóvel e silenciei a campainha. corri todas as cortinas. tenho mantimentos para meses. espero que não me cortem a electricidade e a água. passo muito tempo a dormir. não sei bem se é de dia ou de noite. não ligo a televisão nem a rádio nem a internet. apenas ouço jp simões. da rua chega-me o som da passagem dos eléctricos e dos aviões. às vezes ouço vozes nas escadas e batidas na porta. são eles à procura. cheiro porque não me lavo. a barba cresceu. as unhas cresceram. uso o mesmo pijama desde a noite em que a rádio disse que tinha abarbatado todos os prémios nobel.

eu só escrevi um livro de duas mil páginas com uma frase em cada página. eu só libertei a energia limpa e abundante que encerra o mau hálito matinal. eu só resolvi a desavença entre o meu cunhado e o dono do açougue em frente. eu só misturei a farinha e o gel de banho que explodiu nos dentes do cão de loiça. eu só descobri um número primo que se ignorava por erro de impressão. eu só demonstrei mais eficientes os mercados em vésperas de lua nova.  

não sei que fazer com isto. eles estão à porta e apertam o cerco. se saio sou engolido pelo sistema. se me tranco em casa contraio uma entropia galopante. a minha mãe desejava secretamente que eu fosse cartuxo e o meu pai publicamente que eu gerasse otorrinos. nunca se entenderam. acabei estofador de inequações. criei uma seita que enxota com aforismos as senhoras que levam nutrientes aos sem-abrigo do beato. sou eu e o senhor alfredo da farmácia. somos o direito à fome.

comecei um dia a publicar num blogue. alusões vagas às minhas incursões. recebi um comentário por dia durante meses. eram todos do feijó. desconfiei de uma admiradora lésbica ou de um fanático às pernas. sem descartar o espião do terceiro direito. segui o conselho e protegi-me com spray para picadas. muni-me de pulseiras com hologramas. mudei de nome e de café. evitei o santini. forneci o número verde do corte inglês. saí de casa trajando de carteiro. não mais liguei ao lado errado do bife. nem aos telómeros das batatas fritas. tive esperança. sim. acreditei.

passou mais uma semana. a situação é insuportável. não tenho água nem luz. há bolores pela casa. aglomero cera nos ouvidos. ouço patinhas nervosas à porta. o arranhar das suas antenas. marte ataca. vénus em alinhamento. querem falar-me. beber as minhas palavras. tocar a minha fama. irradiar os meus píxeis. ando desesperado pelo corredor. estou doente de rebentos de soja e da cidra do cartaxo. procuro uma solução. quero sair mas não assim. demasiado fácil. não estou preparado. iluminação. iluminação. esgalho um soneto e enfio-o pela ranhura da porta. autografado. talvez os satisfaça. talvez me deixem em paz. talvez.

começar bem

Leitor, tu és imbecil. Leitor, vai comer no cu. Estas primeiras linhas não assegurariam por si só a imortalidade a uma obra e, pelos vistos, nem uma modesta entrada nos cem mais famosos arranques romanescos que é possível encontrar pela mão do Google. Aí há de tudo e pelas mais diversas razões: pela simplicidade e concisão, pelo achado, pela extensão. Poucas vezes, ao que parece, pela provocação.
Todavia, parece-me fácil bater toda essa gente, pois desconfio que tais listas resultam da selecção, enviesada, de romances já famosos. Ora aqui há batota. Fama atrai fama. Muitos autores medíocres e desconhecidos ficam assim de fora, por serem pouco lidos ou desdenhados. Falo da imensa classe média de escribas que, tal como as pequenas e médias empresas na economia, são o grosso do tecido literário mundial.
Leitor, não chegarei ao fim destas linhas sem mandar bugiar os tipos que impingem listas das primeiras linhas mais sublimes, como impingem citações e o anedotário dos grandes deste mundo. Encosta-se aos balcões das tascas gente mais inspirada que o mainstream dos canais culturais. Esse desafio escatológico, infelizmente, está por lançar, numa ronda pelos bairros, aos militantes da mini e da pevide. Ora diga lá como começava um romance. Algo do género, provavelmente, depois de retocado,

Só me mexo com o meu marido, dizia a puta imóvel debaixo de mim. Olhei para ela e percebi que não valia a pena protestar. Ainda por cima, já tinha pago e o chulo esperava nas escadas.


Ainda hoje não percebo por que me descuidei tão estrondosamente no elevador apinhado com aquele peido homérico e não argumentativo, dos que fazem rir com gosto a plateia no escuro do cinema. Mas percebi o seu efeito retardado na sorte da entrevista para primeiro emprego, dez minutos mais tarde, precisamente com um dos ocupantes ultrajados e hoje meu assistente de direcção.

De todos os imbecis machos do meu condomínio, gente dos serviços como eu, dos engravatados e grunhos de duvidosa classe média com que me cruzo de manhã e baptizo cerimoniosamente, entre dentes, a partir da taxonomia privada que elaborei cuidadosamente durante anos, de toda essa mole enjipada e enjoada de si própria que joga squash, foi a Cuba e tem casa no Alentejo, enfim, de todos os alfas e betos que coabitam uns escassos milhares de metros cúbicos de betão envolto por jardim, cerca e segurança privada na enésima encosta de Lisboa, coube a este vosso amigo que vos escreve e que vos agradece por ser lido, a mim precisamente, a glória dúbia de se tornar, de uma assentada, overnight, zás, sem espinhas, marido cornudo, pai de lésbicas, irmão de gay, director despedido e proprietário de um bingo clandestino. Ora oiçam a minha história.

Há também modos famosos de acabar, mas esses não vou agora procurar no Google. Até porque, francamente, meus caros, estou-me nas tintas. Lamento apenas que não tenham sido tuas as últimas palavras, Rhett Butler.

seca verde

isso da pegada ecológica começa a enervar-me. apanha-se como um tique e não há regresso. a espécie quer diluir-se numa parte por milhão. a minha espécie quer ser homeopática. que raio de fading out. temos de pensar em grande. fazer em grande. ir em grande. e cuidar da arqueologia do futuro. ninguém respeitará uma civilização morta de gnomos verdes. merecemos uma entrada decente na enciclopédia galáctica. eu faço o que posso. eu quero deixar uma pegada na lama. e escrever cem números primos no foz côa. ou nas ventas dos gigantes de páscoa. depois multem-me se quiserem. eu enxergo um gigantesco aquaparque no grand canyon. lojas de conveniência mesmo por cima do pólo magnético. olho à volta e vejo toda a gente em bicos de pés para não importunar o planeta. ai separa o papel. ai a pilha que baba. ai as luzes da sala. ai há blu ray no comércio justo. isso. não puxes o autoclismo e queixa-te que cheiras mal dos pés. não te acanhes. pinta de vermelho o parque dos glaciares. talvez se veja da lua. talvez sirva à coca-cola. seca o mediterrâneo. aterra os alpes. tira as rolhas dos vulcões. não me venham é pedir para ser discreto. foi para isso que deixámos de chapinhar na lama? que combatemos o herpes labial? que inventámos o vinil e o paris-dakar? ora bolas. um bigode na mona lisa. a amazónia para o paint-ball. colossais falos pneumáticos ao longo da falha de santo andré. ao menos pensarão que tínhamos alguma piada.

sorrir sempre

o senhor da loja da esquina anda metido com uma mulher. corre no bairro que não é a sua, a mesma que aos domingos o ajuda a fechar a semana de pés frios e consignações. a mulher anda com má cara. ele não. o senhor da esquina anda leve, cada vez mais leve, e passa o tempo aos segredos com o telemóvel. atrás do balcão mora um homem feliz.
ora isto tem consequências. está à vista que se desleixou na arrumação da montra, quando antes seguia religiosamente o calendário dos dias de qualquer coisa que se vendesse bem. por isso se engana no pacote de jornais que me entrega, nas contas e nos trocos. os clientes resmungam, pagam e saem para a concorrência. não há livro de reclamações. mas há pó nas prateleiras mais altas. à entrada, resistem os anúncios de gente que dá explicações.
o senhor da esquina começa a perturbar o bairro, o delicado equilíbrio da rotina do bairro. saímos da zona de conforto e aguardamos a tragédia. o café em frente, a cabeleireira em frente, a tasca da outra esquina. o comércio está apreensivo. a junta de freguesia já foi informada. mau sinal: o homem dos frangos deixou de meter conversa entre assaduras. e eu, resignado, já não comento as capas de gente famosa. se digo que está frio, ele sorri. se digo que vai chover, ele sorri. atrevo-me a dizer que se afundou a torre de belém. e ele sorri.

falem-me dos transaccionáveis

o meu tio aos 89 anos lembrou-se de perguntar por que razão tinha cada vez menos dinheiro no banco. por que razão havia mais gente desempregada e os espanhóis atravessavam a fronteira para vender cá deste lado o que os do lado de cá não produziam. coisas destas tão simples que um comentador despacha em cinco minutos no telejornal. depois dos 80 qualquer esclarecimento de balcão confunde um homem que acaba de colher a azeitona. à beira dos 90 qualquer falha dos mercados estraga o dia já arruinado por um poço que desabou. o meu tio tinha razão para estar abespinhado. com a azeitona no lagar a 26 cêntimos. com o gato que lhe mataram por maldade. com a minha tia a abalar de si própria ninguém sabe para onde. mas ele sabia onde eu trabalho. sabia bem o que perguntava. inclinou-se para a frente como só os moucos se inclinam quando querem ouvir-se a perguntar. um esgar de sorriso velho e malicioso. à beira de uma epifania. ora vê lá se sais desta. não o disse mas pensou. eu quis sair mas é pela porta. pedir um chá. comer bolachas moles. saber da última excursão a fátima. fiquei imóvel no papel do sobrinho estimado. então descruzei as pernas. inclinei-me também e pedi que repetisse. perguntei porquê só para ganhar tempo. para rebuscar tralha acumulada no mais escuro sótão de ideias feitas. repetiu a pergunta já com o eco da minha tia a ajudar à missa. tu é que sabes disso. a gente estamos velhos. a gente estamos sem cabeça. eu estupidamente disse que não estavam velhos. que tinham cabeça. que eram avós de woodstock. e senti-me velho de repente. eu não sei nada disso. não o disse mas pensei. que seria mais fácil explicar as regras do sudoku a um camarão cozido. a falência das grandes narrativas a um corta-unhas. piedade meu tio. piedade minha tia. eu sou uma correia da engrenagem. mentalmente ajoelhei aos pés de todas as virgens negras. uma mola inofensiva do sistema. um acessório do marketing do euro. o fórum de davos numa travessa de alcântara. o portugal dos pequeninos numa nota só. eu não tenho culpa. eu não sou tóxico. eu sou o subprime de mim mesmo. eu não roubei nada. eu nunca fui o retorno absoluto. a dívida soberana. os futuros dos amanhãs que cantam. eu reprovo os mercados e as agências de rating. as agências de rating são uma invenção da oprah e do jon stewart. eu escarro nos swaps de cds. nos derivados de wall street. eu evito a city e o nasdaq. os soros e os madoffs que se concubinem. eu sou o vosso sobrinho. estão a ver? o vosso sobrinho. vão ao banco e espanquem o gerente. eu ajudo. levantem o dinheiro. a tia que faça um lifting. o tio que vá a um spa. gozem a velhice. vejam o goucha. elejam o cavaco. vão a fátima e a nossa senhora de lurdes. caguem na prudência. adiram ao catching up. uma rave no meio do faval. um rap por conta das geadas. mas não me culpem. eu sei. nascidos pobres para morrer pobres. nascidos brutos para morrer brutos. nascidos tios para este sobrinho. ó tios meus. ó minha santa ignorância. já viram o frio que está?

o livro

os meus avós não acreditavam que os homens tivessem ido à lua. eu era miúdo e eles eram do campo, sentados à mesa como nota de rodapé do júlio dinis. não soube como provar-lhes que não tinham razões para duvidar. nessa altura, eu acreditava na televisão. eles não. hoje, penso que também deveria ter desconfiado. embora por razões diferentes. mas não seria o que sou agora. descrente.

passei muitas horas estirado na cama a ler a bíblia. lia uma versão para jovens, não para a criança que eu era. linguagem mais simples, menos temperada, mas fiel ao espírito original. as histórias dominavam-me. sobretudo as do antigo testamento. tinha pesadelos. tinha uma pilha para ler debaixo dos lençóis. tinha dores nos joelhos. crescia depressa, dizia o médico. faltava à escola de manhã por sonhar demais.

sonho que ando com a eva pelo jardim sem pensar na costela dorida. sonho que odeio o caim e o outro. sonho que adormeço à chuva com noé. é bom adormecer com chuva ao fundo. não são tão maus os irmãos do bom josé? os vilãos. a quadrilha selvagem. e david? david manda para a morte o general para lhe ficar com a mulher. não faças isso, ó david. não te vás embora, ó general. acho irritante a sabedoria de salomão, o presumido. o vaidoso. e a baleia devoradora de todos os jonas do mundo. como pesa a queixada de burro com que sansão matou mil inimigos no afeganistão. bolas. chego atrasado à abertura do mar vermelho, ao canal do suez. cumprimento o eça. bom dia, arafat. provo um canapé. é maná. sabe bem. job continua pobre ponto final. sabia? coma maná. olha o zacarias. o daniel. olha o césar monteiro. olha um profeta louco em cada esquina com os olhos brilhantes de asilo. gosto das saras e das rutes. gosto da raquel. todas mães aos setenta. todas barrigas de aluguer do médio-oriente. tudo velho, barbas brancas, sandálias calcando pó. o sol. a areia. o deserto antes de david lean. olha os carros todo-o-terreno do faraó. estão longe. estão cada vez mais perto. mais perto o yul brynner rapado atrás dos judeus. o nazi sua ao sol atrás do indiana de chicote. e chega charlton heston no seu melhor. traz as tábuas e a winchester. viva columbine e o bezerro de ouro. querem outro dilúvio? corte. yoda estende o dedo e separa a luz das trevas, as águas das terras, os peixes das aves. corta. miguel ângelo hesita colado ao tecto. o papa aproxima-se com gota e vai censurar o dedo brilhante de spielberg. corte. apaga-se a sarça, recolhe-se o mar, afoga-se moisés. corte para as torres gémeas de babel. um avião sobrevoa o templo. o santos dos santos. os sacerdotes apontam o voo picado. corte. bush ouve as crianças na sala de aula. corte. césar monteiro continua às voltas no principe real. negro. genérico. luzes. acordar. imprimir.

mira técnica

fui eleito sem saber ler nem escrever. não prometi nada, não disse nada, não pareci em lado algum. o meu tempo de antena foi uma seca de mira técnica. não me deixaram pôr o amor é um pássaro verde num campo azul no alto da madrugada. foi pena. fui apenas eu.

bebo e vou às putas. bato na mulher e nos filhos. peido-me no elevador. não passo facturas. pontapeio gatos. chego atrasado. roubo lápis ao patrão. sou a soma das partes. toma! sou o pé-de-atleta do país.

agora tenho prioridades. estabilidade. cooperação. excelência. austeridade também. despedi assessores. toma! vou de eléctrico. toma! despedi a sogra. toma! encurtei o hino mas com desgosto. arrendei o palácio. um achado. aos chineses. aos indianos. e aos romenos. expulsei os romenos. ora toma! há quem lhe chame sentido de estado. eu chamo-lhe férias de mim próprio.

vinde a mim conselheiros de estado. sim marceneiro de alcoutim. sim engraxador da baixa. sim coveiro de abrantes. sim sim sim. zé do telhado também. sim senhor. e o diogo alves do aqueduto fica bem. a severa que se despache. o pinheiro de azevedo já cá canta. e a pilar sem o nobel. tem o eusébio em linha? ó meu deus, o eusébio da silva ferreira! o eusébio! ele que aguente, ele que aguente. diga que estou em reunião. diga que recebo embaixadores. não. não. diga que me vai interromper no chuveiro com a carla bruni. enquanto o marido foi aos coches. diga isso. sim. sim. aos coches. ao museu dos coches. diga isso, porra! desligou?

de outra maneira

E se tudo acontecesse de outra maneira
Toscas mãos agora asas
Coração atrás dos olhos
A pele diáfana de azul

Digo mundo no primeiro choro
Peço licença para morrer

E se fosse paródia e não a física
Pedra largada a subir
Água partida no copo
Luz calcetada nos passeios

Digo incêndio que me arrefece
Escrevo enfim com chuva negra.