vidro embaciado

quando era miúdo e chovia, julgava que chovia em todo o mundo. e a miúda dizia que fechava os olhos e os outros ficavam às escuras. e a velha benzia o azeite atrás da porta para afastar o mal.
depois vieram as suspeitas e deixei de ir à igreja por ter tropeçado num livro ao acaso. juntei-lhes a ciência que explica a estrela de belém, a ascensão das nuvens, a génese do arco-íris. cresci.
uma noite sob o céu estrelado continua a perturbar-me. o voo planado dos pássaros sossega-me. o sol lembra-me que sou pó de estrelas. o mar inquieta-me. cresci.
o encanto da poesia é como agarrar areia com as mãos. os grãos que restam são o menino e a sua irmã. na rua passa um burro triste e o homem atrás. chove. o nariz arrefece no vidro embaciado. há musgo nas mãos. o espelho faz de lago. a farinha lembra neve. as vozes são distantes. parece natal. parece que nasci.

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