xxl

tragam-me um gordo numa banheira e demonstrarei generosamente o princípio de arquimedes. eu bem gostaria que isso tivesse passado pela cabeça da professora de física. mas seria uma experiência duplamente problemática. dantes tínhamos de suar para arranjar um gordo. um adiposo igual ao peso do volume do líquido deslocado. ora aí está. não produzíamos os suficientes. faltavam incentivos à gordura e o mais parecido era graxa a dar ao professor. nunca o vi mais gordo exprimia sinceramente a rara flacidez do tempo. mas eram tempos de escassez.

no liceu só havia um bolinhas por turma. quando muito dois buchas nas urgências após o cross. ou um peida-gadocha embaraçado no trampolim. isso era ter sorte. e nós sabíamos. nós cuidávamos da espécie como se protegida. julgo que as meninas também. uma banhas por cada dois nossos bafos-de-onça. um tipo sofria os seus untos. claro. as meninas. a ginástica. a risota por ir ao quadro. ou a lenta fila da inspecção militar. um património excessivo não compromete uma carreira. este comprometia. ou julgávamos que sim. ser gordo tinha vantagens. mas não tenho informação suficiente. sejamos honestos. obesidade pedia consulta ao dicionário. e nós não entendíamos de psicologia. nós éramos invariavelmente uns mete-nojos. uns trinca-espinhas. uns magricelas. gostávamos deles mas eles odiavam a humanidade. ainda hoje. ainda que mais magros do que nós. a memória é mais resiliente. a dos gordos de então. peço finalmente desculpa ao leitão. mas o nome ia-te a matar.

muito antes ainda o gordo exibia-se nos circos como as mulheres barbudas e as irmãs siamesas. agora os gordos fizeram um upgrade. no sentido inverso. agora disputam o ecrã das celebridades. célebres porque muitos. célebres porque imensos. como a apneia existencial de que emergem em sobressalto. que procuram? simplesmente livrarem-se de si próprios. ou pelo menos de generosas porções de si próprios. até serem apenas eles. até serem quase nada. uma pilha de nervos e ossos.
perder aqui é ganhar. nos pneus e na balança. menos é mais. na pulsação e na auto-estima. uma boa ideia para t-shirts. olho as presas do excesso que as habita. do horror que suscitam. das articulações que claudicam. subo à balança com eles. subimos regularmente ao cadafalso. contamos libras em percentagem. e gritamos as magras calorias à incompetência do treinador. temos de perder para ganhar. temos de matar para viver. temos de mostrar para não esconder.
são os meus recentes heróis. heróis xxl. como os compreendo. como eles comem e calam. e tudo porque querem ser bigger than life.

polpa

hesito em comprar livros electrónicos. é um abuso chamar-lhes livros. não envelhecem. não amarelecem. não arquivam o adn de um cabelo loiro. não são livros. q.e.d. e eu gosto que cresçam à cabeceira da cama. às vezes torres gémeas. outras de pisa. torres e torres erguendo e um arco ogival de polpa e circunstância.

duelo

no andar de baixo a rapariga ouve bee gees desde manhã cedo. chega. quero fazer a sesta. então respondo com verdi. ela saca supertramp. eu atiro guilherme tell. só cá faltavam os village people. mudo para a pesada. toma lá wagner que já almoçaste. silêncio. apuro o ouvido. acho que ganhei. mas não. agora são os deolinda. ó meu deeeus. os deoliiiindaaa. estou sem argumentos. rápido. uma ideia. uma ideia. mas onde está o raio do cêdê? raio da mulher da limpeza. ah grande natália. ora embrulha. o amor é veeeerde veeeerdeee. batem à porta. boa tarde. sou do censos 2011 e gostava de. mas essa é a voz da minha tia.

in e out

visito uma amiga no temporário ninho de cucos. é a primeira vez que compareço num retiro deste género. mas apenas vejo pardais e asas feridas. silenciosos. a televisão murmura uma espécie de canal panda para crescidos. barras nas janelas dão para um dia cinzento. para paredes cinzentas. dorme uma mulher debaixo das festas do marido. outro esconde o rosto nos braços cruzados sobre a mesa. às vezes levanta o olhar. onde está o nicholson? não há índios por aqui. tranquilo volta aos seus braços. às suas barras. um quadro branco revela os humores do grupo. o grupo faz autocrítica. hoje estou cool. ontem foi blue. amanhã uma cor qualquer. mas é uma escala de zero a não sei quantos. vejo alguns zeros em roupão de treino. zero menos a minha amiga. falamos e rimos baixo. uma hora mais cedo e teríamos jogado às cartas. fico alarmado de repente. sei que não me distingo dos restantes. podiam trancar-me aqui por erro administrativo. por absurdo. não tenho provas do que sou ou do seu contrário. provas que me deixem lá fora. felizmente aproxima-se a hora do jantar. estou menos tenso. despedimo-nos e lanço uma boa-noite à sala. alguns zeros respondem. a enfermeira marca o código na porta. espero que não se engane ou toca o alarme de evasão. saio apenas eu. o breve conde de monte-cristo. saio enfim para a claridade do pátio molhado. espero que a minha amiga descubra a senha de saída.

gorjetas

havia o graxa no barbeiro e um dia a amizade acabou.

o graxa hoje é só caspa. olha de esguelha. come as garinas. recolhe com a chuva. recolhe os escarros. cuspinha os sapatos. vende cordões.

orbita o barbeiro. gira a cadeira. roda a torneira. ajeita cabeças à força de espelho. faz-lhe perguntas mas sou eu que respondo. também escova a gorjeta.