os números apagados

Neste cenário de desencantamento, de desaparição do sentimento do cosmos e da transcendência, enquanto ordens significantes por excelência, resta-nos enfrentar o duplo desafio de ter que edificar as nossas próprias vidas e construir o sentido da nossa existência.

Maria Amélia Faia, A comunicação da experiência de si na contemporaneidade


Às vezes temos de apagar entradas da agenda, do telemóvel. O verbo é definitivo, irrevogável, mas os mortos são assim, escapam-se-nos das listas breves para a outra definitiva. Um dia também nos escaparemos e também nos apagarão. Eis a pragmática da vida, entradas e saídas. Mas será só isto?

Ninguém guarda os números dos mortos - para quê? ninguém atende do outro lado. E, no entanto, estranhamente alguém disse que ligara para um número, talvez para ouvir uma voz que respondesse. Uma gravação. Um frágil eco de vida. Um mero capricho da técnica.
Não me lembro se alguma vez o fiz com os meus mortos, os que fui apagando das agendas e das memórias de silício.
Sei que vou ter de apagar o número dela. Dar saída. Digo número e não nome: Amélia.

The Beginning of Speech

That child I was came to me
once,
a strange face.
He said nothing. We walked,
each of us staring at the other in silence, our steps
a strange river running in between.

We were brought together by good manners
and these sheets now flying in the wind,
and we split.
A forest written by the earth,
watered by the seasons' change.

Child who once was, come forth!
What brings us together now,
and what do we have to say?

Adonis
(translated, from the Arabic, by Khaled Mattawa)