O velho, a pedra e a mosca *

* versão original de António

O velho está sentado num banco de cortiça à sombra da azinheira. Gosta de se sentar ali, tal como o seu pai fazia. É fim de tarde e o calor que se fez sentir já começa a esmorecer. A temperatura ainda é quente, mas já é suportável. Agradável até. Os pássaros reapareceram e saltam de ramo em ramo nos sobreiros à sua frente.
O velho de cabelos brancos olha em redor. Conserva ainda o mesmo olhar vivo de admiração. Repara na pedra a seus pés. Um quartzito. Metamórfico. Quanta história encerra nos seus quatrocentos milhões de anos? Como chegou até ali? A que pressões tectónicas foi sujeita? Como se fraccionou? E antes, quando ainda não era pedra, nem sedimento, mas apenas transpiração das estrelas? E aquele pedaço de granito, mais além, energia cristalizada em quartzo, mica e feldspato, onde foi amassado?
Uma mosca pousa-lhe nas calças. Um, dois gramas de vida? Que máquina maravilhosa - pensa. Move-se com autonomia, afasta-se dos obstáculos. Monitoriza permanentemente o ambiente onde evolui. Identifica fontes de abastecimento. Reage aos estímulos. Está programada para se auto-preservar. Replica-se eficientemente. As suas asas dificilmente poderiam ser mais aerodinâmicas e funcionais. Um, dois gramas de tecnologia da mais avançada. Perfeita.
Corre agora uma ligeiríssima brisa, que desperta o velho das suas cogitações. Olha para a mosca uma última vez. Com um clique a língua sai-lhe da boca, disparada, e apanha a mosca, que, de imediato, engole.


Fim alternativo do BZR

Corre agora uma ligeiríssima brisa que desperta o velho das suas cogitações. Olha a mosca que lhe sobe pela perna, depois lhe voa para o braço. Surpreendido, o velho repara que os olhos do insecto brilham incandescentes, quase à temperatura do sol. Mas já não vai a tempo de a sacudir. Com um silvo que nenhum humano jamais poderia ouvir, o apêndice bucal do artrópode projecta uma fina lâmina de luz branca que atravessa a lente e o olho direito do velho, sai imaculada pelo occipital e vai incendiar os ramos baixos da azinheira alguns metros atrás.

Páscoa atrasada *

os baixos lá de casa eram o lugar da carnificina pascal. estou para perceber como se escolhia a vítima e porquê, a sabedoria do povo ainda me confunde e inquieta. confortava-me a sorte de não ter nascido borrego, embora considerasse a hipótese disparatada.
às tantas deixaram-me ter acesso ao espectáculo, o mais tranquilo que alguma vez presenciei. o meu tio tinha ares de profissional. o golpe brusco e certeiro no pescoço do animal, era apenas aí que eu disfarçava um estremecimento de horror, produzia um efeito especial, som de ar que se escapa e lamento de surpresa, de perdão?, pelo gesto cruel. às vezes pensava que íamos ser castigados por isso, que fazíamos qualquer coisa proibida. sentia-me fascinado e triste, mas não cúmplice. e normalmente enjoado pelo cheiro morno do sangue que ia enchendo a celha de barro. a minha avó traçava uma cruz na superfície fumegante e todos estávamos em silêncio. achava indigno que já não se pudesse voltar atrás, mesmo se quiséssemos.
penso que odiava esse tio naqueles instantes, desejava-lhe mal. cheguei mesmo a desconfiar que já teria matado homens ou era capaz de o fazer. mas desculpava-o. por ignorância e por ser meu tio.
vi matar muita coisa, já crescido, principalmente na televisão. há poucos anos assisti a tudo com o interesse cretino do repórter. fiz perguntas, tirei fotografias ao cabrito, o antes e o depois, e até segurei a pele esticada para o lado a fim de soltar um saco acizentando a rebentar de vísceras. tenho para ali as fotografias e julgo que podiam ser ampliadas pelas ruas e colinas de lisboa ou revestir o parlamento.
o meu tio já não mata e está morto e eu guardo religiosamente o longo formão de cabo de madeira. o bico afiado continua reluzente. os cordeiros continuam de deus.

* recuperado de 1995

sobressalto jornalógico

perguntas difíceis *

- Amas-me?
- Amo-te.
- Queres-me?
- Quero-te.
- Desejas-me?
- Desejo-te.
- Sou o teu marido?
- És.
- És a minha mulher?
- Sou.
- Não tens mais ninguém na tua vida?
- Não.
- Então porque tens baton na cara?
- Mas eu... Olha, tenho de ir para casa porque a minha mãe já me está a chamar para o jantar.
- Bolas, Nucha, estragas sempre a brincadeira.

* recuperado de 1993

o roubo *

- Bom dia.
- Bom dia.
- Dê-me um café e uma água.
- Com gás?
- Sem.
- Natural?
- Fresca. E um SG.
- Filtro?
- Ventil.
- Não há.
- Então Gigante.
- Pode ser Luso?
- Pode. Tem telefone?
- Ao fundo.
- Troca-me cem escudos em moedas?
- Troco.
- Não se mexa. Isto é um assalto.
- Está a brincar.
- Não estou. Passe para cá o dinheiro.
- Tenha calma.
- Estou calmo. Dê-me o dinheiro.
- Todo?
- Todo.
- Já é a terceira vez esta semana.
- Para mim é a primeira.
- A primeira?
- A primeira.
- Não parece.
- Ora essa. Porquê?
- Parece um profissional.
- Acha? Obrigado, estava com medo de dar barraca.
- A primeira vez é sempre assim.
- Vá lá, despache-se com a massa.
- Tem estado fraco hoje. Há bola na televisão.
- Ai sim? Quem joga?
- A selecção. Mas tenho a televisão avariada.
- Mas ela está ligada.
- Sim, mas não dá no segundo.
- Ah!
- Aqui tem.
- Cinco mil?
- Já lhe disse que tem estado fraco.
- Olhe, vamos fazer assim. Venho cá noutro dia e acertamos as coisas.
- Como queira.
- Está aberto no sábado?
- Só até às dez.
- Há aqui algum café aberto?
- O Central.
- É longe?
- Ao fundo da rua.
- Obrigado.
- Esqueceu-se do guarda-chuva.
- Obrigado.
- Nada, volte sempre.
- Até sábado.
- Até sábado.

* recuperado de 1992

subúrbio *

Entrou silencioso, fechando a porta com o calcanhar. Ainda se ouvia o táxi a soluçar pela rua acima.

Acendeu e logo apagou a luz da sala, como a certificar-se da ordem reinante. Avançou para o corredor e, no último momento, mesmo antes de desaparecer à esquina, lançou o casaco num voo parabólico de chaves e moedas a tilintar pelo espaço. Algures na escuridão, o gato miou vagamente.

Já no quarto, estacou. Doíam-lhe os pés, estava rouco de tanto fumar. Num movimento lento, girou sobre os calcanhares como um boneco desarticulado e desabou para trás, sobre o cadeirão, esmagando as almofadas num sopro delicioso de ar fresco e aveludado.

Deixou-se afundar, de braços armados e mãos abertas dependuradas sem vontade. Escoando-se por entre as persianas, a palidez da madrugada revelava uma forma imprecisa ao lado da cama. Ronronava baixinho. Ficou a olhá-la durante algum tempo.

Depois, atirou a perna direita num movimento brusco, o sapato desprendeu-se num estranho ângulo e subiu, rodando graciosamente sobre si próprio, até aterrar em cima do armário. Com o dedo grande já livre, descalçou o outro sapato. Espreguiçou-se num longo e ruidoso bocejo. Maquinalmente, estendeu o braço e tirou o cigarro que espreitava do maço sobre a mesa ao lado. Não encontrou o isqueiro.

Levantou-se, o cigarro entre lábios, e saiu. Ouviu-se água a correr, o trabalho da escova nos dentes, novamente água a correr e, finalmente, um gargarejar lírico e complicado. No quarto, o ronronar tornara-se mais agudo, quase uma melodia.

Voltou já de pijama e cigarro aceso. Levantou um pouco a persiana e entreabriu a janela.
Deu a volta à cama, debruçou-se sobre o vulto e premiu um botão. Ouviu-se um leve assobio de chaleira. Escreveu a dois dedos. O visor iluminou-se, passando de verde-alface a azul cobalto, e dois grandes olhos amendoados formaram-se lentamente, pestanejando o acordar. A máquina pigarreou, tossiu estática e acabou por fazer ouvir uma quase Kathleen Turner electrónica:

- Bom dia, John. Hoje trabalhaste até tarde...

* recuperado de 1993

salto para a lógica