Imagina a questão mais estranha para não passares por banal. As perguntas frequentes são para gente da mesma condição.

Escolhe a fila mais lenta para celebrares uma opção errada. Se te enganares, sabes que a escolha foi acertada.

Lança-te na grelha do metro para saíres do outro lado na televisão. Mas é preciso que antes te resumam a cinzas.

Ouve o não dito, lê o não escrito, recebe o não dado. É mais fácil dizeres o que não queres, escreveres o que não sabes, dares o que não podes.

Faz uma última vez. Mesmo que seja a primeira.

vidro embaciado

quando era miúdo e chovia, julgava que chovia em todo o mundo. e a miúda dizia que fechava os olhos e os outros ficavam às escuras. e a velha benzia o azeite atrás da porta para afastar o mal.
depois vieram as suspeitas e deixei de ir à igreja por ter tropeçado num livro ao acaso. juntei-lhes a ciência que explica a estrela de belém, a ascensão das nuvens, a génese do arco-íris. cresci.
uma noite sob o céu estrelado continua a perturbar-me. o voo planado dos pássaros sossega-me. o sol lembra-me que sou pó de estrelas. o mar inquieta-me. cresci.
o encanto da poesia é como agarrar areia com as mãos. os grãos que restam são o menino e a sua irmã. na rua passa um burro triste e o homem atrás. chove. o nariz arrefece no vidro embaciado. há musgo nas mãos. o espelho faz de lago. a farinha lembra neve. as vozes são distantes. parece natal. parece que nasci.
o verbo verto à nascente
a rua deslizo em luz
o riso rimo água ardente
a pedra fico onde a pus

verbo falir

estou quase falido. devo ao meu prédio, ao meu bairro, a vagos primos na província. preparo-me para dever ao país.
vivi seis meses acima das minhas possibilidades. comprei um gato e mandei arranjar os estores da cozinha. o resultado está aí. hoje vivo à beira da clandestinidade e nem sequer odeio especialmente o status quo. mas colou-se-me um rating que sinceramente não mereço.
evito o vizinho a quem cravei couves e cebolas, o dentista que amoleci na consulta ao molar esganado, o tasqueiro à esquina que me fiou uma tarde de imperiais. o lingrinhas dos jornais acena-me com uma expressão estranha. o do talho manda o filho no meu alcance (sorte ser obeso). e o casal dos frangos, contemplando as peles crestadas, talvez sonhe ver-me chiar sobre brasas eternas. resta-me o barbeiro, que entretanto foi aparar o queixo ao s. pedro.
um actor de fama duvidosa que não no bairro tem-me adiantado euros em troca de porções assustadoras da minha colecção de bd. troca directa. expediente doloroso. espero não chegar ao corto maltese, aos meus sete por cento psicológicos. não aguentaria tal perda de soberania.
espreito desolado o cartão de crédito e o cartão de débito. estão coçados e praticamente inoperacionais. valem escandalosamente menos do que o plástico em que estão impressos. vejo pelo canto do olho a pilha de contas sobre a secretária enquanto descarto amigos do facebook a quem telefonar. ou sou eu próprio removido como quem espreme um ponto negro e relaxa. que faz um artista sem subsídios sem o número de telefone da ministra da cultura? inscreve-se num partido? faz short selling?
comecei a plantar ervinhas no terraço e espero pacientemente o trabalho da natureza. tão lenta, a natureza. tão lento o meu génio. ninguém me paga pelos blogues que recheio até de madrugada, pelo diário que vou organizando sobre a minha dieta do mundo. alguém aspirava a entrar no supermercado e comprar tudo o que precisasse com a sua beleza. mas ser beat em s. francisco era certamente mais fácil do que alternativo em campo de ourique.
que fazer meu deus? a amazon continua a tentar-me com ofertas especiais. e a miúda do spa fronteiro não deixa de me fazer massagens de olhinhos quando o meu ego se cruza com o dela.
olho o picasso esgazeado que se encosta ao canto coberto de pó. é provavelmente o mais contrafeito dos contrafeitos picassos esgazeados ao canto de qualquer chafarica. mas a moldura é de bom gosto e deve valer um swap decente na baixa. vou tentar a sorte. que diabo. saco a moldura, pontapeio o picasso para debaixo da cama e abandono o meu tê-um. odeio o sol que me encandeia. odeio esta venda irrevogável de activos. mas amanhã quero ir ver o benfica à luz e oferecer uma lembrança difícil ao meu gato. o meu companheiro de infortúnio precisa urgentemente de ser capado. a mim também me custa. mas não foi isto que abril prometeu. nem o euro. bolas. quero comprar o jornal mas não posso. quero engraxar os sapatos mas não devo. resolvo então mandar parar o táxi.

reino fungi

habita-me um fungo. a minha unha do pé pertence doravante ao reino fungi.
como me aconteceu não sei. mas suponho que esta colónia oportunista vai resistir ferozmente à guerrilha que lhe montei. entretanto não me sentirei tão só.
consulto a informação disponível em rede. lembro matéria que há muito esqueci nos bancos do liceu. as hifas, os esporos, os micélios. todo um admirável mundo discreto que ora nos regala o paladar ora nos atormenta de comichão as virilhas. os fungos mais os vírus e as bactérias são bons companheiros. vivem connosco há milhares de anos e possivelmente herdarão a terra. como as baratas, essas crocantes fugidias. uma coisa é certa: os fungos trabalharão afincadamente na nossa remoção. o planeta é um vastíssimo ecoponto.
a minha onicomicose, digo isto sem vaidade, é das mais resistentes paródias de fungos. a unha perdeu a cor, aumentou de espessura e um filão quase marfim atravessa-a longitudinalmente. há aqui um abstraccionismo inesperado. monocromático. há talento a meus pés.
comprei para os devidos efeitos um antifúngico, meio quartilho de acetona e pó branco para o interior dos sapatos. tudo legal e sem comparticipação. o estado assobia para o lado quando se trata de fungos e outros parasitas.
o verniz medicamentoso entrega-se num odor forte e eficaz. domina a hora de deitar. é pena ser transparente. é pena as cores da moda ainda não chegarem tão baixo.
preparo um novo morticínio. desarrolho o frasco e encharco generosamente o pequeno pincel. debruço-me qual gulliver sobre uma lilliput aterrorizada. espalho o verniz com devoção e a língua de fora. não farei prisioneiros. ai dos vencidos.

letra pequena

morreu mais um capitão de abril.
um capitão devia morrer em abril. não em janeiro. ao frio de janeiro jaz morto e arrefece.
alguns ainda percebem o título no jornal, no despacho da agência. alguns ainda.
um dia capitão e abril não farão sentido na mesma frase.
um dia abril será escrito com letra pequena.
abril já é escrito com letra pequena.
as palavras começam a ser pequenas.
as palavras pequenas.
como abril.