Chegou um envelope do meu banco com dois garfos e duas facas. Embrulhados em papel. Pensei logo em diversificação: “entraram-me no ramo da cutelaria sem eu ter dado por isso”. Errado, confirmei que o logo era o de sempre.
Todavia, estranhei a falta da colher, que atribuí a um lapso. E fui esperando por um faqueiro completo e bem temperado, ainda que às prestações. Mas a promessa não se realizou, possivelmente por não ter lido as instruções em anexo, ou não levar muito a sério que “não há almoços grátis”. Ainda hoje receio o estorno, pese embora as dificuldades práticas da coisa.
Há uns anos, tudo isto seria bizarro (não me refiro ao pormenor da colher). Hoje, esperemos o pior.
Por exemplo: dantes, as bombas de gasolina vendiam gasolina como os bancos vendiam dinheiro. Santa divisão do trabalho: ou “era para encher, se faz favor” ou “não se faz aí um jeitinho no spread?”. E não "30 na bomba 2, a que está indexada à Euribor" ou "desculpe, a lavagem automática de cheques engoliu a ficha".
Leio que a Galp Energia lançou hoje, num posto de abastecimento em Lisboa, um novo projecto multimédia, com rádio e televisão próprias. Depois, virá a instalação da TV e rádio Galp nos 50 principais postos em Portugal e o futuro alargamento a Espanha. Com a inevitável dobragem, suponho.
Acho bem. Nem sei como é que ninguém se lembrara disso. Se não vamos lá com sapatos e conservas, lancemo-lhes octanas e outros cheiros de Portugal. A rádio, por sua vez, apostará “na música portuguesa, para reforçar a ‘Portugalidade’ da marca”. Entre o tirAM e o ttFM, temo pela embriaguez das playlists.
Não sendo um consumidor fidelizado, abraçar-me-ei sempre à primeira barraca ou torre de menagem que me acene – desde que fareje, à distância, que ali se mata a sede aos pópós.
Mas terei dúvidas, dentro em breve, se quero pôr-me a par da “actualidade e do trânsito” com esse carácter de urgência. E de estender quilómetros de pernas acossado pela “publicidade genérica e informação específica sobre a localidade onde se insere o posto”. Imagino um presidente “bem-vindo-bem-vindo”de região de turismo e as suas feiras de gastronomia. Vejo-o sorrir (abre lentamente), ao fundo um castelo (abre ainda mais), mas não consigo passar daqui. Estou preso ao licor beirão e ao homem da capa negra, esses velhos compagnons de route.
De resto, é toda uma nova paisagem audiovisual que se desenha. E a velha estrada nunca mais será a mesma. Um must, os Maranata em mp3.
Objectos por perder III
- Blogs
Versão primitiva dos VRogs e dos actuais Biogs. Fizeram furor no início do século, quase arrastando o País para a loucura. É difícil perceber hoje as razões de tal convulsão e a nostalgia que sempre evoca no meio V-intelectual.
Os poucos indícios disponíveis incluem passagens incompreensíveis do preâmbulo da "Grande Proibição" e fragmentos dispersos de uma dezena de BUDs - "Blogs dos Últimos Dias", fase tardia reconhecida como pouco representativa do espírito inicial. Os BUDs constituíram a fase mais radical da chamada "blogosfera" (também conhecida, no final, por BUDosfera ou PIPIsfera), por oposição à CAMUSfera ou "Blogs dos Primeiros Dias".
Versão primitiva dos VRogs e dos actuais Biogs. Fizeram furor no início do século, quase arrastando o País para a loucura. É difícil perceber hoje as razões de tal convulsão e a nostalgia que sempre evoca no meio V-intelectual.
Os poucos indícios disponíveis incluem passagens incompreensíveis do preâmbulo da "Grande Proibição" e fragmentos dispersos de uma dezena de BUDs - "Blogs dos Últimos Dias", fase tardia reconhecida como pouco representativa do espírito inicial. Os BUDs constituíram a fase mais radical da chamada "blogosfera" (também conhecida, no final, por BUDosfera ou PIPIsfera), por oposição à CAMUSfera ou "Blogs dos Primeiros Dias".
Objectos por perder II
- Comandos (TV, CD,DVD, etc.)
Costumavam enfiar-se pelos abismos dos sofás e aí permanecer para grande arrelia dos donos.
Os últimos eram finos como uma folha de papel. Houve também a moda dos transparentes, dos miméticos e dos deformáveis.
Sobreviveram mais tempo porque, além de se fundirem entre si, começaram a incorporar funções domésticas: abrir cortinas, gelar cerveja, controlar luzes, aspirar migalhas. O recorde pertence a uma marca branca, indo-alemã, com 387 funções, entre as quais o voto electrónico, a depilação a laser e a visão nocturna.
Ainda se produzem em ateliês retro, mas apenas para fanáticos. A maior colecção encontra-se no já referido MOMA, mas há interessantes colecções de particulares.
- Músicos
Encontram-se nos centros históricos de algumas cidades Património Mundial, em zonas típicas devidamente referidas nos roteiros turísticos. Mas é preciso ser conhecedor para distinguir os genuínos dos samplados. A predominância é de músicos de percussão. Estão quase extintos os metais e restam muito poucas cordas, que são pagas a peso de ouro.
Às vezes, são contratados para animar workshops etno-age e, mais raramente, acompanham ludostars nas V-digressões.
Estão organizados numa Ordem (MEC - Músicos Especiais por Conta), mas sem grande implantação no meio, ao que parece por divisão entre uma linha negra e uma linha vermelha (esta pretende a destruição de todo o hard-soft; a primeira defende um compromisso histórico).
A MEC foi considerada recentemente como Parceiro Social.
Costumavam enfiar-se pelos abismos dos sofás e aí permanecer para grande arrelia dos donos.
Os últimos eram finos como uma folha de papel. Houve também a moda dos transparentes, dos miméticos e dos deformáveis.
Sobreviveram mais tempo porque, além de se fundirem entre si, começaram a incorporar funções domésticas: abrir cortinas, gelar cerveja, controlar luzes, aspirar migalhas. O recorde pertence a uma marca branca, indo-alemã, com 387 funções, entre as quais o voto electrónico, a depilação a laser e a visão nocturna.
Ainda se produzem em ateliês retro, mas apenas para fanáticos. A maior colecção encontra-se no já referido MOMA, mas há interessantes colecções de particulares.
- Músicos
Encontram-se nos centros históricos de algumas cidades Património Mundial, em zonas típicas devidamente referidas nos roteiros turísticos. Mas é preciso ser conhecedor para distinguir os genuínos dos samplados. A predominância é de músicos de percussão. Estão quase extintos os metais e restam muito poucas cordas, que são pagas a peso de ouro.
Às vezes, são contratados para animar workshops etno-age e, mais raramente, acompanham ludostars nas V-digressões.
Estão organizados numa Ordem (MEC - Músicos Especiais por Conta), mas sem grande implantação no meio, ao que parece por divisão entre uma linha negra e uma linha vermelha (esta pretende a destruição de todo o hard-soft; a primeira defende um compromisso histórico).
A MEC foi considerada recentemente como Parceiro Social.
Objectos por perder I
- o telemóvel
Lembro-me de um tijolinho amarelo e azul que o meu avô guardava num baú juntamente com outra tralha. Quando lhe pedíamos, ia buscá-lo ao quarto, retirava-o com toda a solenidade do estojo, limpava cuidadosamente o mostrador de vidro e explicava como servia para mandar mensagens e falar com as pessoas. Ainda hoje acho incrível a velocidade com que mexia o seu grande polegar (que, de certa forma, herdei) sobre as teclas pequeninas. Ríamos imenso quando imitava um condutor a conduzir, todo torcido e fazendo caretas.
Não sei como, arranjara um modo de recarregar as baterias e pô-lo a tocar e nós conhecíamos todas as melodias de cor. Há poucos anos, vi um exemplar quase igual no MOMA (Museu de Objectos Muito Antigos).
Às vezes, apareciam amigos dele lá em casa. Iam para o escritório (a minha mãe dizia que eram as maluquices do avô) e lembro-me perfeitamente de, ao passar à porta - ele não me deixava assistir - ouvir um formidável concerto de apitos, campainhas e outros sons estranhos.
O telemóvel, um dia, desapareceu. Nunca se soube como, mas ficou a suspeita de que tinha sido um técnico de RV, ao que parece coleccionador de coisas antigas, que costumava fazer a manutenção de rotina. O meu avô teve um grande desgosto e fechou-se durante uma semana no quarto, a atacar V-Portais e a comer BioPizzas.
Lembro-me de um tijolinho amarelo e azul que o meu avô guardava num baú juntamente com outra tralha. Quando lhe pedíamos, ia buscá-lo ao quarto, retirava-o com toda a solenidade do estojo, limpava cuidadosamente o mostrador de vidro e explicava como servia para mandar mensagens e falar com as pessoas. Ainda hoje acho incrível a velocidade com que mexia o seu grande polegar (que, de certa forma, herdei) sobre as teclas pequeninas. Ríamos imenso quando imitava um condutor a conduzir, todo torcido e fazendo caretas.
Não sei como, arranjara um modo de recarregar as baterias e pô-lo a tocar e nós conhecíamos todas as melodias de cor. Há poucos anos, vi um exemplar quase igual no MOMA (Museu de Objectos Muito Antigos).
Às vezes, apareciam amigos dele lá em casa. Iam para o escritório (a minha mãe dizia que eram as maluquices do avô) e lembro-me perfeitamente de, ao passar à porta - ele não me deixava assistir - ouvir um formidável concerto de apitos, campainhas e outros sons estranhos.
O telemóvel, um dia, desapareceu. Nunca se soube como, mas ficou a suspeita de que tinha sido um técnico de RV, ao que parece coleccionador de coisas antigas, que costumava fazer a manutenção de rotina. O meu avô teve um grande desgosto e fechou-se durante uma semana no quarto, a atacar V-Portais e a comer BioPizzas.
Objectos perdidos III
- os arcos e setas feitos de varetas de guarda-chuva (ainda hoje me admiro por nunca termos furado olhos e barrigas)
- as "mestras" que guardavam miúdos e orientavam as contas, as cópias e a tabuada
- os calções rasgados atrás, para facilitar as naturais urgências da gaiatagem
- os palitos nos cubos de gelo tintados de groselha que muitas vezes sabiam a peixe
- o pátio das meninas, o pátio dos rapazes - o tratado de Tordesilhas explicado às criancinhas
- as heróicas transmissões das viagens Apollo
- as calças do Inverno sobre as ceroulas do nosso contentamento
- o calvário das frieiras
- o homem e o burro dos "esperdícios", eco-pontuais a seguir ao jantar
- o "ganhão" que endurecia o pão ao sol, para não lhe dar tanta vontade de comer
- os filmes para 21
- as "mestras" que guardavam miúdos e orientavam as contas, as cópias e a tabuada
- os calções rasgados atrás, para facilitar as naturais urgências da gaiatagem
- os palitos nos cubos de gelo tintados de groselha que muitas vezes sabiam a peixe
- o pátio das meninas, o pátio dos rapazes - o tratado de Tordesilhas explicado às criancinhas
- as heróicas transmissões das viagens Apollo
- as calças do Inverno sobre as ceroulas do nosso contentamento
- o calvário das frieiras
- o homem e o burro dos "esperdícios", eco-pontuais a seguir ao jantar
- o "ganhão" que endurecia o pão ao sol, para não lhe dar tanta vontade de comer
- os filmes para 21
Objectos perdidos II
Lembro-me de:
- recortar e colar as "Lendas de Portugal". A cola era de farinha e as páginas do album cada vez mais espessas;
- devorar a "Cruzada", revistinha católica, saída não sei donde, que se dedicava fervorosamente a lembrar histórias do martírio cristão atrás da Cortina de Ferro;
- resolver repetidamente, até à náusea, puzzles das colónias, recortados pelo meu tio Zé a partir de mapas colados sobre uma fina prancha de madeira;
- passar horas a produzir dezenas de sticks de madeira para jogar hóquei, em vez de futebol. Cada um durava, em média, um ou dois minutos;
- surpreender a Ti Rosa, parteira curiosa e de barbicha de bode (foi a que me puxou para o mundo, afinal), a fazer benzeduras na cozinha, debruçada sobre um pires com azeite;
- abrir a porta a visitas (algumas estrangeiras) que saudavam o meu Pai com um extraordinário "Salutas Samideano". Eram esperantistas e levavam da melhor literatura portuguesa vertida em Esperanto (antologia de contos), além de jogos e livros de histórias (tudo isto ainda religiosamente guardado);
- começar a odiar a guerra colonial por razões dietéticas: o ser obrigado em África (diziam-me) a alimentar-me exclusivamente de bananas, que detestava !
- recortar e colar as "Lendas de Portugal". A cola era de farinha e as páginas do album cada vez mais espessas;
- devorar a "Cruzada", revistinha católica, saída não sei donde, que se dedicava fervorosamente a lembrar histórias do martírio cristão atrás da Cortina de Ferro;
- resolver repetidamente, até à náusea, puzzles das colónias, recortados pelo meu tio Zé a partir de mapas colados sobre uma fina prancha de madeira;
- passar horas a produzir dezenas de sticks de madeira para jogar hóquei, em vez de futebol. Cada um durava, em média, um ou dois minutos;
- surpreender a Ti Rosa, parteira curiosa e de barbicha de bode (foi a que me puxou para o mundo, afinal), a fazer benzeduras na cozinha, debruçada sobre um pires com azeite;
- abrir a porta a visitas (algumas estrangeiras) que saudavam o meu Pai com um extraordinário "Salutas Samideano". Eram esperantistas e levavam da melhor literatura portuguesa vertida em Esperanto (antologia de contos), além de jogos e livros de histórias (tudo isto ainda religiosamente guardado);
- começar a odiar a guerra colonial por razões dietéticas: o ser obrigado em África (diziam-me) a alimentar-me exclusivamente de bananas, que detestava !
Juro
Eu nunca quis ter um blogue. Quis ter carrinhos, aviões, quadradinhos e a Catarina que era minha vizinha e boas notas no liceu. E gatos, sempre. E mais 10 cm de altura, cá por causa de certas coisas. Agora um blogue, não. Lamento.
Comunicar, comunicar sempre
O dedo em riste, as fúrias e os palavrões (para não falar das agressões físicas) poderiam ser evitados, em grande medida, através de um sistema de comunicação colocado na retaguarda dos carros. Assim, com uma simples pressão num botão, um painel mostraria ao condutor ultrapassado delicadas expressões como "Obrigado", "Desculpe" ou mesmo "É muito gentil". E este, por sua vez, dificilmente não corresponderia com um aceno ou um breve OK de faróis.
Esta é, pelo menos, a proposta de um psicólogo americano em "Man Hopes Green Light Will Stop Road Rage". Ao que parece, os americanos também se desconsideram na estrada.
Alguns condutores, penso eu, iriam até mais longe, sofisticando a cortesia. Por exemplo: "Obrigado por me deixar fazer esta manobra estúpida e perigosa. É que estou atrasado porque o pimpolho não me deixou dormir nada esta noite" ou "Desculpe a buzinadela, mas a minha vizinha está a ter um bébé neste momento lá atrás" ou ainda "Lamento imenso o susto que lhe preguei, mas já vinha há muito tempo atrás de si, o que, convenhamos, não é nada agradável, pois o seu carro deita muito fumo". Encontraríamos mesmo variações idiossincráticas: "Tá-se bem" ou "Ó amigo, não me diga nada, carago, que já me basta o cagaço que eu apanhei".
O problema é que o dispositivo servirá igualmente, mais cedo ou mais tarde, para traduzir em veementes flashes tudo o que vai verdadeiramente na alma do condutor da frente. Trata-se apenas de uma questão de programação e de vocabulário. E de, ao escrever em público, nos sujeitarmos à vigilância semântica da BT. Pelos palavrões e pela ortografia.
Esta é, pelo menos, a proposta de um psicólogo americano em "Man Hopes Green Light Will Stop Road Rage". Ao que parece, os americanos também se desconsideram na estrada.
Alguns condutores, penso eu, iriam até mais longe, sofisticando a cortesia. Por exemplo: "Obrigado por me deixar fazer esta manobra estúpida e perigosa. É que estou atrasado porque o pimpolho não me deixou dormir nada esta noite" ou "Desculpe a buzinadela, mas a minha vizinha está a ter um bébé neste momento lá atrás" ou ainda "Lamento imenso o susto que lhe preguei, mas já vinha há muito tempo atrás de si, o que, convenhamos, não é nada agradável, pois o seu carro deita muito fumo". Encontraríamos mesmo variações idiossincráticas: "Tá-se bem" ou "Ó amigo, não me diga nada, carago, que já me basta o cagaço que eu apanhei".
O problema é que o dispositivo servirá igualmente, mais cedo ou mais tarde, para traduzir em veementes flashes tudo o que vai verdadeiramente na alma do condutor da frente. Trata-se apenas de uma questão de programação e de vocabulário. E de, ao escrever em público, nos sujeitarmos à vigilância semântica da BT. Pelos palavrões e pela ortografia.
Objectos perdidos I
Lembro-me (não sei se já referido por aí)
- do escarrador
- do Quadro de Honra
- dos documentários antes dos filmes
- das tabelas de logaritmos
- dos problemas de tanques que enchem e se esvaziam
- do contínuo que era da Legião
- do escarrador
- do Quadro de Honra
- dos documentários antes dos filmes
- das tabelas de logaritmos
- dos problemas de tanques que enchem e se esvaziam
- do contínuo que era da Legião
A mola
Escorrega-me entre os dedos e, com um último ressalto na corda de nylon, inicia a queda em direcção ao centro da Terra - aprendi há muito que acelera a nove metros por segundo quadrado.
Sigo-a com pena e alguma irritação (é a terceira nesta semana) e imagino mesmo que volteia em câmara lenta. Lembra-me o osso que o macaco lança ao espaço e se transforma em nave danubiana. Ou a garrafa atirada do avião para o meio de uma tribo africana. Deve haver com certeza outros objectos simples apanhados numa história mais complicada do que a sua obscura existência...
Enquanto o chão se aproxima (é difícil entender como os dois corpos se atraem mutuamente), prometo um guião que tire do esquecimento esta classe de servidores domésticos. Recolho o resto da roupa, fecho a janela e decido que não vou lá abaixo outra vez. Liberto-a para sempre e sei que amanhã já não a encontrarei.
Sigo-a com pena e alguma irritação (é a terceira nesta semana) e imagino mesmo que volteia em câmara lenta. Lembra-me o osso que o macaco lança ao espaço e se transforma em nave danubiana. Ou a garrafa atirada do avião para o meio de uma tribo africana. Deve haver com certeza outros objectos simples apanhados numa história mais complicada do que a sua obscura existência...
Enquanto o chão se aproxima (é difícil entender como os dois corpos se atraem mutuamente), prometo um guião que tire do esquecimento esta classe de servidores domésticos. Recolho o resto da roupa, fecho a janela e decido que não vou lá abaixo outra vez. Liberto-a para sempre e sei que amanhã já não a encontrarei.
O homem incorpóreo
Na pequena sala havia apenas o candeeiro aceso sobre a mesa de madeira, encostada à parede, face a um espelho enorme, vertical, com moldura. Arrumada à mesa, uma cadeira. Quem entrasse, teria de andar uns dois metros, em diagonal, para se colocar em frente do conjunto: era impossível outra ocupação da sala, dada a disposição dos objectos e nudez do resto, na penumbra.
(antes, uma senhora de meia-idade não passara sequer da porta, como se estivesse a entrar por engano em "terreno vago", abandonado, sem interesse)
Então olhei e vi. Ou seja, vi o espelho não devolver a minha própria imagem. Mas via nele as paredes da sala, atrás de mim, mais a mesa e o candeiro. Tudo estava correcto... menos a minha inesperada ausência. Por uns breves segundos, creio ter experimentado um angustiante desconforto, misto de surpresa e desorientação. Olhei até por cima do ombro e recuei instintivamente, como se procurasse um outro ponto de vista que me sossegasse os sentidos.
Depois, avancei e, com uma cautela exploratória, estendi o braço (um dejà vu delicioso que me arrepiou!) e a minha mão penetrou o vazio, o nada, a não ser o espaço para além do virtual espelho à frente. Nesse momento, só pude sorrir. O outro lado, obviamente, compunha-se de uma sala disposta simetricamente à primeira, com mesa, cadeira e candeeiro.
Fiquei mais um ou dois minutos, saboreando o desvanecer da "coisa" e as inevitáveis referências. Calculei mesmo variações sobre o tema e artifícios mais engenhosos a explorar.
O resto do Museu de Arte Moderna de Helsínquia foi já percorrido com alguma desconfiança.
(antes, uma senhora de meia-idade não passara sequer da porta, como se estivesse a entrar por engano em "terreno vago", abandonado, sem interesse)
Então olhei e vi. Ou seja, vi o espelho não devolver a minha própria imagem. Mas via nele as paredes da sala, atrás de mim, mais a mesa e o candeiro. Tudo estava correcto... menos a minha inesperada ausência. Por uns breves segundos, creio ter experimentado um angustiante desconforto, misto de surpresa e desorientação. Olhei até por cima do ombro e recuei instintivamente, como se procurasse um outro ponto de vista que me sossegasse os sentidos.
Depois, avancei e, com uma cautela exploratória, estendi o braço (um dejà vu delicioso que me arrepiou!) e a minha mão penetrou o vazio, o nada, a não ser o espaço para além do virtual espelho à frente. Nesse momento, só pude sorrir. O outro lado, obviamente, compunha-se de uma sala disposta simetricamente à primeira, com mesa, cadeira e candeeiro.
Fiquei mais um ou dois minutos, saboreando o desvanecer da "coisa" e as inevitáveis referências. Calculei mesmo variações sobre o tema e artifícios mais engenhosos a explorar.
O resto do Museu de Arte Moderna de Helsínquia foi já percorrido com alguma desconfiança.
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