serenidade

os números apagados

Neste cenário de desencantamento, de desaparição do sentimento do cosmos e da transcendência, enquanto ordens significantes por excelência, resta-nos enfrentar o duplo desafio de ter que edificar as nossas próprias vidas e construir o sentido da nossa existência.

Maria Amélia Faia, A comunicação da experiência de si na contemporaneidade


Às vezes temos de apagar entradas da agenda, do telemóvel. O verbo é definitivo, irrevogável, mas os mortos são assim, escapam-se-nos das listas breves para a outra definitiva. Um dia também nos escaparemos e também nos apagarão. Eis a pragmática da vida, entradas e saídas. Mas será só isto?

Ninguém guarda os números dos mortos - para quê? ninguém atende do outro lado. E, no entanto, estranhamente alguém disse que ligara para um número, talvez para ouvir uma voz que respondesse. Uma gravação. Um frágil eco de vida. Um mero capricho da técnica.
Não me lembro se alguma vez o fiz com os meus mortos, os que fui apagando das agendas e das memórias de silício.
Sei que vou ter de apagar o número dela. Dar saída. Digo número e não nome: Amélia.

The Beginning of Speech

That child I was came to me
once,
a strange face.
He said nothing. We walked,
each of us staring at the other in silence, our steps
a strange river running in between.

We were brought together by good manners
and these sheets now flying in the wind,
and we split.
A forest written by the earth,
watered by the seasons' change.

Child who once was, come forth!
What brings us together now,
and what do we have to say?

Adonis
(translated, from the Arabic, by Khaled Mattawa)

O velho, a pedra e a mosca *

* versão original de António

O velho está sentado num banco de cortiça à sombra da azinheira. Gosta de se sentar ali, tal como o seu pai fazia. É fim de tarde e o calor que se fez sentir já começa a esmorecer. A temperatura ainda é quente, mas já é suportável. Agradável até. Os pássaros reapareceram e saltam de ramo em ramo nos sobreiros à sua frente.
O velho de cabelos brancos olha em redor. Conserva ainda o mesmo olhar vivo de admiração. Repara na pedra a seus pés. Um quartzito. Metamórfico. Quanta história encerra nos seus quatrocentos milhões de anos? Como chegou até ali? A que pressões tectónicas foi sujeita? Como se fraccionou? E antes, quando ainda não era pedra, nem sedimento, mas apenas transpiração das estrelas? E aquele pedaço de granito, mais além, energia cristalizada em quartzo, mica e feldspato, onde foi amassado?
Uma mosca pousa-lhe nas calças. Um, dois gramas de vida? Que máquina maravilhosa - pensa. Move-se com autonomia, afasta-se dos obstáculos. Monitoriza permanentemente o ambiente onde evolui. Identifica fontes de abastecimento. Reage aos estímulos. Está programada para se auto-preservar. Replica-se eficientemente. As suas asas dificilmente poderiam ser mais aerodinâmicas e funcionais. Um, dois gramas de tecnologia da mais avançada. Perfeita.
Corre agora uma ligeiríssima brisa, que desperta o velho das suas cogitações. Olha para a mosca uma última vez. Com um clique a língua sai-lhe da boca, disparada, e apanha a mosca, que, de imediato, engole.


Fim alternativo do BZR

Corre agora uma ligeiríssima brisa que desperta o velho das suas cogitações. Olha a mosca que lhe sobe pela perna, depois lhe voa para o braço. Surpreendido, o velho repara que os olhos do insecto brilham incandescentes, quase à temperatura do sol. Mas já não vai a tempo de a sacudir. Com um silvo que nenhum humano jamais poderia ouvir, o apêndice bucal do artrópode projecta uma fina lâmina de luz branca que atravessa a lente e o olho direito do velho, sai imaculada pelo occipital e vai incendiar os ramos baixos da azinheira alguns metros atrás.

Páscoa atrasada *

os baixos lá de casa eram o lugar da carnificina pascal. estou para perceber como se escolhia a vítima e porquê, a sabedoria do povo ainda me confunde e inquieta. confortava-me a sorte de não ter nascido borrego, embora considerasse a hipótese disparatada.
às tantas deixaram-me ter acesso ao espectáculo, o mais tranquilo que alguma vez presenciei. o meu tio tinha ares de profissional. o golpe brusco e certeiro no pescoço do animal, era apenas aí que eu disfarçava um estremecimento de horror, produzia um efeito especial, som de ar que se escapa e lamento de surpresa, de perdão?, pelo gesto cruel. às vezes pensava que íamos ser castigados por isso, que fazíamos qualquer coisa proibida. sentia-me fascinado e triste, mas não cúmplice. e normalmente enjoado pelo cheiro morno do sangue que ia enchendo a celha de barro. a minha avó traçava uma cruz na superfície fumegante e todos estávamos em silêncio. achava indigno que já não se pudesse voltar atrás, mesmo se quiséssemos.
penso que odiava esse tio naqueles instantes, desejava-lhe mal. cheguei mesmo a desconfiar que já teria matado homens ou era capaz de o fazer. mas desculpava-o. por ignorância e por ser meu tio.
vi matar muita coisa, já crescido, principalmente na televisão. há poucos anos assisti a tudo com o interesse cretino do repórter. fiz perguntas, tirei fotografias ao cabrito, o antes e o depois, e até segurei a pele esticada para o lado a fim de soltar um saco acizentando a rebentar de vísceras. tenho para ali as fotografias e julgo que podiam ser ampliadas pelas ruas e colinas de lisboa ou revestir o parlamento.
o meu tio já não mata e está morto e eu guardo religiosamente o longo formão de cabo de madeira. o bico afiado continua reluzente. os cordeiros continuam de deus.

* recuperado de 1995

sobressalto jornalógico

perguntas difíceis *

- Amas-me?
- Amo-te.
- Queres-me?
- Quero-te.
- Desejas-me?
- Desejo-te.
- Sou o teu marido?
- És.
- És a minha mulher?
- Sou.
- Não tens mais ninguém na tua vida?
- Não.
- Então porque tens baton na cara?
- Mas eu... Olha, tenho de ir para casa porque a minha mãe já me está a chamar para o jantar.
- Bolas, Nucha, estragas sempre a brincadeira.

* recuperado de 1993

o roubo *

- Bom dia.
- Bom dia.
- Dê-me um café e uma água.
- Com gás?
- Sem.
- Natural?
- Fresca. E um SG.
- Filtro?
- Ventil.
- Não há.
- Então Gigante.
- Pode ser Luso?
- Pode. Tem telefone?
- Ao fundo.
- Troca-me cem escudos em moedas?
- Troco.
- Não se mexa. Isto é um assalto.
- Está a brincar.
- Não estou. Passe para cá o dinheiro.
- Tenha calma.
- Estou calmo. Dê-me o dinheiro.
- Todo?
- Todo.
- Já é a terceira vez esta semana.
- Para mim é a primeira.
- A primeira?
- A primeira.
- Não parece.
- Ora essa. Porquê?
- Parece um profissional.
- Acha? Obrigado, estava com medo de dar barraca.
- A primeira vez é sempre assim.
- Vá lá, despache-se com a massa.
- Tem estado fraco hoje. Há bola na televisão.
- Ai sim? Quem joga?
- A selecção. Mas tenho a televisão avariada.
- Mas ela está ligada.
- Sim, mas não dá no segundo.
- Ah!
- Aqui tem.
- Cinco mil?
- Já lhe disse que tem estado fraco.
- Olhe, vamos fazer assim. Venho cá noutro dia e acertamos as coisas.
- Como queira.
- Está aberto no sábado?
- Só até às dez.
- Há aqui algum café aberto?
- O Central.
- É longe?
- Ao fundo da rua.
- Obrigado.
- Esqueceu-se do guarda-chuva.
- Obrigado.
- Nada, volte sempre.
- Até sábado.
- Até sábado.

* recuperado de 1992

subúrbio *

Entrou silencioso, fechando a porta com o calcanhar. Ainda se ouvia o táxi a soluçar pela rua acima.

Acendeu e logo apagou a luz da sala, como a certificar-se da ordem reinante. Avançou para o corredor e, no último momento, mesmo antes de desaparecer à esquina, lançou o casaco num voo parabólico de chaves e moedas a tilintar pelo espaço. Algures na escuridão, o gato miou vagamente.

Já no quarto, estacou. Doíam-lhe os pés, estava rouco de tanto fumar. Num movimento lento, girou sobre os calcanhares como um boneco desarticulado e desabou para trás, sobre o cadeirão, esmagando as almofadas num sopro delicioso de ar fresco e aveludado.

Deixou-se afundar, de braços armados e mãos abertas dependuradas sem vontade. Escoando-se por entre as persianas, a palidez da madrugada revelava uma forma imprecisa ao lado da cama. Ronronava baixinho. Ficou a olhá-la durante algum tempo.

Depois, atirou a perna direita num movimento brusco, o sapato desprendeu-se num estranho ângulo e subiu, rodando graciosamente sobre si próprio, até aterrar em cima do armário. Com o dedo grande já livre, descalçou o outro sapato. Espreguiçou-se num longo e ruidoso bocejo. Maquinalmente, estendeu o braço e tirou o cigarro que espreitava do maço sobre a mesa ao lado. Não encontrou o isqueiro.

Levantou-se, o cigarro entre lábios, e saiu. Ouviu-se água a correr, o trabalho da escova nos dentes, novamente água a correr e, finalmente, um gargarejar lírico e complicado. No quarto, o ronronar tornara-se mais agudo, quase uma melodia.

Voltou já de pijama e cigarro aceso. Levantou um pouco a persiana e entreabriu a janela.
Deu a volta à cama, debruçou-se sobre o vulto e premiu um botão. Ouviu-se um leve assobio de chaleira. Escreveu a dois dedos. O visor iluminou-se, passando de verde-alface a azul cobalto, e dois grandes olhos amendoados formaram-se lentamente, pestanejando o acordar. A máquina pigarreou, tossiu estática e acabou por fazer ouvir uma quase Kathleen Turner electrónica:

- Bom dia, John. Hoje trabalhaste até tarde...

* recuperado de 1993

salto para a lógica

seis aparições de lobo antunes sobre um plátano*

Não me iludo dentro de ti ó cidade:
regressar em suaves prestações acidentais não é tanto voltar às
origens

para isso comprava uma colina nos arredores e instalava
os amigos incertos do nome das ervinhas e dos arbustos
dos pássaros nervosos ao cair da tarde
(este tinto é tão tanino,
não foi o telemóvel que tocou?)

quando batem trindades na igrejinha em festa
eco no metro da manchete no borda d’água

é mais:
desfiar a rotina de um ponto focal, a perspectiva onde pendurar o hábito e então alisar algumas dobras do tempo (e dos sinos de são lourenço)

como quem alisa papel de lustro, recorta figurinhas dos presépios perinatais e as revê transtornadas esferovite e madeira

(na sobreposição exacta da esplanada fantasma
sorvendo o café central, as borras da vida)

atrás da rede municipal que distrai o graffitti e o gueto
é preciso:
seguir o método de ocasião, ou o convite que não deserto

e pedala depois serra acima à procura de almofadas de musgo,
do veludo verde para calafetar a fé nos homens e a rudeza do cenário
(como o verde-bilhar do alentejano que descai e
arrefece as tabelas de logaritmos em véspera de ponto)

sem mudanças,
às vezes sem mãos, para efeito apenas da gincana de rua

(talvez fiques em primeiro se não entornares a
água do copo ou o ovo no pátio do liceu)
outras vezes fora de mão
na corredoura fora de horas, no duro apego ao poeta que
sonhou inquietar os indiferentes,
os vivos,
cisnes calcinados pela rolha em brasa
subtil lâmina espreita a coxa que escorrega infeliz
o ringue cheio de livramentos sem rodas
de futuros e derivados capitães alvega
da próxima sociedade civil
a rua povoada dos santos de junho e dos bons vizinhos em camisa,
saltando os serões, a fogueira e a polis e o último episódio do fugitivo,
um cromo de abril
Mas mói e rói:
até a última linha se escapar no horizonte acanhado do retrovisor

(enquanto a cidade me foge também)
até engatar na lomba da estação uma lembrança virada duplamente do avesso

o google portugal devolve:
portalegre maiúsculo em cento e dezasseis mil entradas em zero ponto dezassete segundos

(e hoje sinto-me com sorte, apeado no munisítio
sobriamente tingido nem de amarelo nem de preto)
sem qualquer link para a página do meu primeiro beijo
nenhum download desses verões sem explicação.

é por isso que tenho de mudar de motor de busca,
é por isso que ctrl+alt+del.

* publicado na revista Plátano, Março 2005

transição













Erra uma asa, partida,
Dum qualquer pássaro morto,
Que só porque erra tem vida
No mar do nada sem porto.

Reinaldo Ferreira

Águas de Fevereiro

Marcelo e Menezes, interpretando correctamente a angústia dos portugueses pela temida ausência da chuva até Abril, vão estender de Gaia a Celorico um cordão humano de energias positivas, de modo a esconjurar a seca e rapidamente humidificar a Nação.

M e M lançam o desafio a todos os partidos para que "engrossem a cadeia" com os seus militantes, clientelas e governos-sombra, "clarificando as águas turvas próprias do clima eleitoral em que vivemos". E ameaçam: "ou estão connosco ou serão responsáveis pelo País gretado que legaremos às futuras gerações".

Até ao momento, apenas Portas e Monteiro se deixaram ir na corrente. "Sou ministro do Mar, não preciso de dizer mais nada", explicou o ministro do Mar. Monteiro, lacónico, pensa sinceramente que "podemos viver com défice, mas não podemos viver com défice de água".

O PS mostrou-se algo receptivo, mas criticou a localização geográfica, que considera "padecer de alguma precipitação". Seguro preferia que "o elo salvífico se estendesse entre o Rato, S. Bento e Belém, que até fica simbolicamente em frente ao rio".

O PSD ainda não reagiu, mas fontes próximas do Primeiro-Ministro adiantam que a mobilização do partido se fará certamente através da JSD, que já começou a preparar um novo outdoor inspirado em temas hídricos.

Na nota que enviou à imprensa, o PC mostrou-se confiante na "resposta que os trabalhadores da Meteorologia darão no acto eleitoral, alterando radicalmente as previsões que, gota a gota, inudam a opinião pública com a inevitabilidade de uma enxurrada absoluta".

Finalmente, o Bloco recusa em absoluto a ideia: "O País está sedento de uma bátega, mas de uma bátega verdadeiramente de esquerda. Este hipócrita pacto de regime revela o desespero desses senhores pela merecida travessia do deserto que vão iniciar a 20 de Fevereiro". Além disso, afirma Francisco, "que autoridade têm para falar da matéria? Alguma vez cantaram à chuva? Alguma vez fizeram chover"?

Magalhães, estreito colaborador de Marcelo e porta-voz da iniciativa, considera que "não é líquido que S. Pedro nos faça logo a vontade, mas já seria uma vitória se houvesse aguaceiros pelo menos no dia das eleições, não a morrinha habitual".