os números apagados

Neste cenário de desencantamento, de desaparição do sentimento do cosmos e da transcendência, enquanto ordens significantes por excelência, resta-nos enfrentar o duplo desafio de ter que edificar as nossas próprias vidas e construir o sentido da nossa existência.

Maria Amélia Faia, A comunicação da experiência de si na contemporaneidade


Às vezes temos de apagar entradas da agenda, do telemóvel. O verbo é definitivo, irrevogável, mas os mortos são assim, escapam-se-nos das listas breves para a outra definitiva. Um dia também nos escaparemos e também nos apagarão. Eis a pragmática da vida, entradas e saídas. Mas será só isto?

Ninguém guarda os números dos mortos - para quê? ninguém atende do outro lado. E, no entanto, estranhamente alguém disse que ligara para um número, talvez para ouvir uma voz que respondesse. Uma gravação. Um frágil eco de vida. Um mero capricho da técnica.
Não me lembro se alguma vez o fiz com os meus mortos, os que fui apagando das agendas e das memórias de silício.
Sei que vou ter de apagar o número dela. Dar saída. Digo número e não nome: Amélia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Eis a pragmática da vida, entradas e saídas. Mas será só isto?

Anónimo disse...

Nao chamar o nome nem marcar o número! De início fi-lo, talvez, por cobardia, mas pensando bem... não era este distanciamento que ela procurava?... esta visão de outra dimensão para o que ainda cá fica?...
pelo sim pelo não... vou respeitar.