gato
Foto de M. Guiomar, 1982
Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!
De que obscura forças és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?
Alexandre O'Neill
futuros contactos
a cabala e o burro
Então esteve o pessoal acordado até tarde, colado à televisão, para isto? De que serviram os votos da Europa? E o Michael Moore? E o Bruce on the road? E a senhora Heinz à frente do lóbi português? E os enviados da SIC? E o Nuno Rogeiro? Aqui há cabala. E da grossa. Não se monta assim um espectáculo para o mau da fita casar com a moça. Pagámos bilhete, queríamos um fim à maneira, à Dirty Kerry, make may day punk. Mas não. Ainda se pusessem o Billy Cristal a apresentar a coisa, como nos Óscares. OK, Kerry, estás despedido. Já te tínhamos avisado, à primeira, rua. Resta-nos a vingança, que, ao contrário do que dizem, se serve a ferver. Retirem, pois, todos os W do teclado (e o M, que é o W invertido). Mudem para Linux. Queimem as gangas e os discos dos Doors. Mandem regressar os emigrantes (e os enviados da SIC). Desertem os McDonalds e a Disneyland. Ou então não paguem. Pregai os malefícios da Coca-Cola e da Broadway. Times Square à hora de ponta? Não conhecem a IC19. E a 25 de Abril é mais bonita que a Golden Gate, a Boca do Inferno mais excitante que o Grand Canyon. Nashville? Temos o pessoal do Redondo e os EnaPá. Las Vegas? Olhai o bingo do Belenenses. Ai ele é o Spielberg e Silicon Valey? Não há pai pró Canijo e prá Moderna. Isaltino, és o nosso Giuliani. Desliguem o Jay Leno (basta-nos o Goucha) e o Seifeld (avance o Fernando Rocha). T'arrenego Frank Carlluci e Joe DiMaggio. E o pecado que mora ao lado. Mais o Dallas e o Jim Carrey e as entrecoxas da Sharon Stone . Ala que se faz tarde. Escrevam ao vosso deputado e ao Rui Gomes da Silva. E que não venha agora o Presidente apelar à serenidade. Basta. Quatro anos não são quatro dias. Mais do mesmo? O George, o Dick, o Donald, a Condolezza? Todos juntos e unplugged? Credo. Antes o Santana por mais um ano. Espirra o americano e a gente tem de dizer santinho. E emprestar-lhe o lenço. E bater-lhe nas costas: então quando aparece lá por casa? Bonito, ó Vasco, que o mundo está perigoso. God bless America e também não se esqueça de nós.
serviço reforçado
Foto de L. Coelho
O amarelo da Carris ostenta o claro indoor à navegação: "1 de Novembro - Reforço do serviço aos cemitérios". E mais uns detalhes lúgubres, umas explicações de boa-fé aos interessados. É mesmo, directo ao estômago: entra-se e, em vez de poema gráfico do O'Neill ou de umas mamas silicónicas no placard, é esta a viagem que nos oferece a companhia. Bonito. Felizmente, sem reforço visual da mensagem. Sem jardins de pedra.
Obliterado, pesquiso em redor. Caramba, há alguém que leia estas palavras sem estremecer? É por isso que vão todos tão calados e cabisbaixos, tão utentes do 15 para Algés? Teria sido assim em 41: serviço reforçado aos crematórios? É assim na faixa de Gaza: serviço reforçado à Intifada? Foi assim com as Mães de Bragança? Olham-me de soslaio e leio-lhes a alma: que podemos fazer? Sim, que podemos fazer?
Por reflexo, deito uma olhadela aos comandos do eléctrico. É uma mulher madura e firme, loira provavelmente de Corroios. Fico descansado. Qual barca de Caronte, qual carreta, tem é filhos e marido à espera do jantar e um hemorroidal que a faz remexer continuamente no assento.
Reforço aos cemitérios. Ida e volta ou só ida? Apenas com passe de terceira idade? Traga a família, directamente, sem paragem. É bom viajar com o marketing .
Imagino o que será no 25 de Abril. Ou no orgulho gay. Ou em manifestações contra o Governo - "reforço do serviço a S. Bento, traz outro amigo também"? É estranho viajar com o marketing que nos lembra que estamos vivos.
A hora do túnel
Sem avisar, Portugal entrou um dia no túnel do tempo (ou seria um buraco de verme?) e não voltou. Não há certezas quanto à saída do outro lado: esbarrou provavelmente na sublime sova de Henriques a sua mãe ou enfiou-se, em hora de ponta, no leito de Dona Carlota Joaquina. De qualquer forma, saiu para não voltar. É contumaz.
Portugal, se voltasse, recolheria tarde (e sem chave de casa). E ao velho Português residente, discreto hífen entre os anos, pouco ânimo restaria senão para tagarelar a sua preocupação com a demora. O menino são horas de chegar? Pois fica de castigo sem o jipe a semana inteira.
Então que fazer? - perguntava Lenine nos dias difíceis (e Abrunhosa nos restantes). Simples: escavemos! Sim, escavemos. Escavemos túneis e contra-túneis, à procura. Escavemos.
Minar é a solução clara para o nosso problema – embora suja, muito working class e cerveja preta, minemos. Como Diógenes à procura, procuremos. Não o Homem, mas o País desaparecido sem avisar. Não só de lanterna, à picareta também, a minar. Não cínicos, não senhor, mas em fila e radicais, como na Branca de Neve e no MRPP dos murais. Levados, levados, sim. Tunelemos. Pelas hortas e pelos condomínios, no Marco e na 2ª circular. Escalavremos. A terra ainda é larga, sobra para todos. Esqueçam Olivença e os subsídios. Cavemos.
O Português braçal tem, pois, uma obra e um destino pela frente: o túnel. E o seu fundo. O fundo do túnel. E ao fundo, branca e leve aleluia, qualquer luz. Ou, branco e hard aleluia, qualquer Frota. Qualquer ponte cintilante meu irmão.
O fundo do túnel: Alfa de Centauro ou Bruxelas, Quinta da Marinha em Belém. Tanto faz. Cava e emergirás. É a hora do túnel. É a hora do túnel.
Portugal, se voltasse, recolheria tarde (e sem chave de casa). E ao velho Português residente, discreto hífen entre os anos, pouco ânimo restaria senão para tagarelar a sua preocupação com a demora. O menino são horas de chegar? Pois fica de castigo sem o jipe a semana inteira.
Então que fazer? - perguntava Lenine nos dias difíceis (e Abrunhosa nos restantes). Simples: escavemos! Sim, escavemos. Escavemos túneis e contra-túneis, à procura. Escavemos.
Minar é a solução clara para o nosso problema – embora suja, muito working class e cerveja preta, minemos. Como Diógenes à procura, procuremos. Não o Homem, mas o País desaparecido sem avisar. Não só de lanterna, à picareta também, a minar. Não cínicos, não senhor, mas em fila e radicais, como na Branca de Neve e no MRPP dos murais. Levados, levados, sim. Tunelemos. Pelas hortas e pelos condomínios, no Marco e na 2ª circular. Escalavremos. A terra ainda é larga, sobra para todos. Esqueçam Olivença e os subsídios. Cavemos.
O Português braçal tem, pois, uma obra e um destino pela frente: o túnel. E o seu fundo. O fundo do túnel. E ao fundo, branca e leve aleluia, qualquer luz. Ou, branco e hard aleluia, qualquer Frota. Qualquer ponte cintilante meu irmão.
O fundo do túnel: Alfa de Centauro ou Bruxelas, Quinta da Marinha em Belém. Tanto faz. Cava e emergirás. É a hora do túnel. É a hora do túnel.
Portugueses suaves
a rapariga
chegou ao balcão
e pediu um português vermelho
do outro lado veio apenas
o pacote de cigarros
que desapareceu no bolso da gabardina
saímos para a claridade do rossio
e esquecemo-nos para sempre um do outro
como o fumo
suavemente
em vermelho
em multidão
chegou ao balcão
e pediu um português vermelho
do outro lado veio apenas
o pacote de cigarros
que desapareceu no bolso da gabardina
saímos para a claridade do rossio
e esquecemo-nos para sempre um do outro
como o fumo
suavemente
em vermelho
em multidão
No comments
No comments, disparou MRdS à saída. O que é que ele disse? perguntou o semanário lá para trás, atingido de raspão. Que não faz comentários, esclareceu o diário logo à frente, atingido em cheio. No domingo? insistiu o semanário. Não, agora não faz comentários, esclareceu a rádio. E no domingo? intrometeu-se a TV. Mas no domingo ele já não ia fazer, bolas, saltou a revista. Professor, o que vai fazer a seguir? perguntaram em uníssono e aglomerados. No comments. Bom, mas isso já sabemos, replicou a imprensa local. O que lhe pergunto é se vai ser recebido por mais alguém, pela AR, por exemplo. No comments.
(silêncio embaraçado dos media)
Senhor Professor, que dia é hoje? atira desesperadamente a estagiária. No comments. Acha que vai chover? No comments. E o Benfica, ganha este ano o campeonato? No comments. Quantos são seis vezes sete? No comments. Olhe, Professor, parece que está a arder a sua casa de Cascais. No comments. Sabe o que é um algoritmo? Um quark? A décima milionésima parte de um quarto do meridiano terrestre? Parece que Marte é habitada por romenos... Crê que a Cinha sai primeiro que o Zé e depois do Prado Coelho? Convida-me para jantar? Como se chama? Tem horas? Empresta-me 5 euros? No comments. No comments. No comments. Táxi! Táxi! É pra Celorico, sff.
(silêncio embaraçado dos media)
Senhor Professor, que dia é hoje? atira desesperadamente a estagiária. No comments. Acha que vai chover? No comments. E o Benfica, ganha este ano o campeonato? No comments. Quantos são seis vezes sete? No comments. Olhe, Professor, parece que está a arder a sua casa de Cascais. No comments. Sabe o que é um algoritmo? Um quark? A décima milionésima parte de um quarto do meridiano terrestre? Parece que Marte é habitada por romenos... Crê que a Cinha sai primeiro que o Zé e depois do Prado Coelho? Convida-me para jantar? Como se chama? Tem horas? Empresta-me 5 euros? No comments. No comments. No comments. Táxi! Táxi! É pra Celorico, sff.
Já comentador não sou
(Com a devida vénia a Manuel Maria Barbosa du Bocage)
Já Comentador não sou!... Ao anónimo povo
Meu comentário vai faltar, desfeito em vento...
Eu ao Governo ultrajei! O meu tormento
Breve será se outra estação me acolher de novo.
Conheço agora já quão grande impacto
Fez o livro ou o assunto que comento.
SIC!... Tiveras algum merecimento,
Se num raio de inspiração me desses o contrato!
Se me arrependo? A língua sempre bravia
Brade em alto pregão à audiência,
Que atrás do domingo fantástico corria:
O outro cretino foi... A resistência
Esgotei!... Oh! Se me credes, gente pia,
Ficai de olho no canal e tende alguma paciência.
Já Comentador não sou!... Ao anónimo povo
Meu comentário vai faltar, desfeito em vento...
Eu ao Governo ultrajei! O meu tormento
Breve será se outra estação me acolher de novo.
Conheço agora já quão grande impacto
Fez o livro ou o assunto que comento.
SIC!... Tiveras algum merecimento,
Se num raio de inspiração me desses o contrato!
Se me arrependo? A língua sempre bravia
Brade em alto pregão à audiência,
Que atrás do domingo fantástico corria:
O outro cretino foi... A resistência
Esgotei!... Oh! Se me credes, gente pia,
Ficai de olho no canal e tende alguma paciência.
Pare, SCUT e olhe
Desenganem-se os que esperam ver aqui uma ligação infratextual do caso do professor de Sousa às façanhices da quinta das celebridades. É certo: acodem ambos pelo mesmo código postal e acentuam pecaminosamente, como o rigoroso fio dental, as poderosas nádegas da democracia portuguesa. É igualmente certo: são ambos verso e anverso de um previsível outdoor de Miguel de Sousa. É finalmente certo: nem sequer são algo triste ou algo fado, antes qualquer coisa de intermédio. Mas seria penoso, convenhamos, revisitar um lugar-comum que infortunadamente habitamos já. Condomínio fechado e licor beirão, estão a ver.
Apesar das aparências, Portugal não se resume a três sílabas mal frequentadas. Mas hoje insiste nos shortcuts: MRS, QDC, TVI... - há aqui qualquer coisa que lembra o 8 vertical truncado com o 7 horizontal (*). Juntemo-lhes agora PSL, a ver o que dá... iiiiiisso – e, em caixa baixa, rgs, o gatilho mais sensível a oeste de Los Pecos. Ou será a leste? Já com MPA, o dono da coisa, atiça-se-me o corrector automático do Word, sugerindo um inescrutável PT a bold underscript. Experimentemos ainda Belém, que se escreve, como Rato, apenas a dois tempos silábicos (tempo de semear, tempo de colher). E PP, essas ainda tímidas partes por milhão. Que alegria! Falta alguém?
Bom, mas o que é que temos? Simples: WYSIWYG. A todos em epígrafe, por isso, uma vez sem emenda, a comenda. Definitiva e justa. Púrpura. Pelos plots e pelos lots. LOL. Ao peito. Mas com jeito. Pregada.Aos restantes, que aproveitem o próximo domingo e fiquem fora até tarde, até muito tarde. Mas não demasiado. Façam a ponte. Outra ponte. Longa, prudentemente longa. Sábia e suspensa. Pênsil. E SCUT. Depois falamos.
(*) Mas então o plural de batráquio anfíbio aquático, anuro, da família dos ranídeos, não é rans?
Apesar das aparências, Portugal não se resume a três sílabas mal frequentadas. Mas hoje insiste nos shortcuts: MRS, QDC, TVI... - há aqui qualquer coisa que lembra o 8 vertical truncado com o 7 horizontal (*). Juntemo-lhes agora PSL, a ver o que dá... iiiiiisso – e, em caixa baixa, rgs, o gatilho mais sensível a oeste de Los Pecos. Ou será a leste? Já com MPA, o dono da coisa, atiça-se-me o corrector automático do Word, sugerindo um inescrutável PT a bold underscript. Experimentemos ainda Belém, que se escreve, como Rato, apenas a dois tempos silábicos (tempo de semear, tempo de colher). E PP, essas ainda tímidas partes por milhão. Que alegria! Falta alguém?
Bom, mas o que é que temos? Simples: WYSIWYG. A todos em epígrafe, por isso, uma vez sem emenda, a comenda. Definitiva e justa. Púrpura. Pelos plots e pelos lots. LOL. Ao peito. Mas com jeito. Pregada.Aos restantes, que aproveitem o próximo domingo e fiquem fora até tarde, até muito tarde. Mas não demasiado. Façam a ponte. Outra ponte. Longa, prudentemente longa. Sábia e suspensa. Pênsil. E SCUT. Depois falamos.
(*) Mas então o plural de batráquio anfíbio aquático, anuro, da família dos ranídeos, não é rans?
À sombra da bandeira III
Estatísticas que ninguém publica:
- Portugueses que no Sábado retiraram a bandeira nacional da janela: 12
- Portugueses que no Sábado a substituiram pela da Grécia: 12
- Gregos residentes em Portugal que no Sábado fizeram o mesmo: 31
- Portugueses que no Sábado não utilizaram a expressão "ver-se grego", referindo-se ao próximo jogo de Portugal: 2
- Número de heliportos existentes na Grécia: 7 (2002) *
- Número de heliportos existentes em Portugal: 0 *
* De acordo com a informação recolhida no site da CIA
- Portugueses que no Sábado retiraram a bandeira nacional da janela: 12
- Portugueses que no Sábado a substituiram pela da Grécia: 12
- Gregos residentes em Portugal que no Sábado fizeram o mesmo: 31
- Portugueses que no Sábado não utilizaram a expressão "ver-se grego", referindo-se ao próximo jogo de Portugal: 2
- Número de heliportos existentes na Grécia: 7 (2002) *
- Número de heliportos existentes em Portugal: 0 *
* De acordo com a informação recolhida no site da CIA
À sombra da bandeira II
Parece haver sinais de vida alienígena nos arredores de Lisboa. Numa torre em Carnaxide, a monotonia do xadrez verde-vermelho foi interrompida pelo vermelho-branco helvético, traindo a presença de um cidadão suíço que resolveu desfraldar o seu orgulho na longa tradição do chocolate e relógio de cuco. Ou então trata-se simplesmente de um indígena provocador. Em qualquer caso, um muito provável herói para apontamento de reportagem da SIC.
À sombra da bandeira I
Acordou sobressaltado, após um sonho povoado de bandeiras desfraldadas ao vento.
Na casa de banho, ainda ensonado, olhou-se ao espelho e quase gritou de horror. A sua cara mudara completamente durante a noite: a metade esquerda estava tingida de vermelho, a outra metade do verde complementar. Rigorosamente dividida, sem qualquer degradé. Recuou, com o coração aos pulos, as mãos em máscara sobre o rosto. Permaneceu estático durante alguns segundos, de olhos esbugalhados a espreitar entre os dedos. Então avançou para o lavatório e abriu a torneira. Escrutinou meticulosamente a pele, poro a poro. Depois lançou-lhe chapadas de água e esfregou, ora de um lado ora do outro, com as unhas e a escova. Nada. Nem sinais de tinta ou de qualquer maquilhagem. A pigmentação era real e definitiva.
Passou à sala e sentou-se no sofá, a digerir a situação. Com um pressentimento, ligou a televisão. Pois bem, ali estava a confirmação: em todos os canais que percorreu, locutores, animadores, entrevistados e transeuntes, políticos, artistas e comentadores, personalidades e cidadãos anónimos – todos sem excepção, mesmo os animais - mostravam quão drástica fora a transformação. Da noite para o dia, sem qualquer aviso ou explicação. Eram agora bicolores, o verde e o vermelho estampados nos rostos (apenas nos rostos, felizmente).
Mas ninguém, estranhamente, pelo menos na televisão, parecia preocupar-se com o assunto. Acontecera, pura e simplesmente, como a chuva ou os engarrafamentos. Pele óbvia e quotidiana como a anterior. Só ele se dava conta da metamorfose, ainda preso na memória de um rosto que fora pálido e triste, quase anémico.
Espreitou pela janela e viu pessoas na paragem do autocarro. À distância, era visível a mudança. Ninguém escapara. Olhou o céu, ainda azul - o céu deles, caramba, o tão celebrado azul português – e estremeceu. Algo lhe dizia que o processo ainda não terminara. Suspirando, voltou a meter-se na cama e ligou o rádio (o som, ao menos, não tem cor). Puxou o lençol para cima e sorriu. Talvez fosse um sonho, apenas um sonho, de que era preciso acordar. Fechou os olhos e sorriu. Era isso mesmo, apenas um sonho.
Virou-se na cama, de costas para o rádio, no preciso momento em que o mostrador amarelo-manga desmaiado começou a piscar, tornando-se mais luminoso. Gradualmente, duas cores ganharam vida e horizontalmente o cindiram: superior, o FM desviou-se para o vermelho; por baixo, o AM para o verde complementar.
Na casa de banho, ainda ensonado, olhou-se ao espelho e quase gritou de horror. A sua cara mudara completamente durante a noite: a metade esquerda estava tingida de vermelho, a outra metade do verde complementar. Rigorosamente dividida, sem qualquer degradé. Recuou, com o coração aos pulos, as mãos em máscara sobre o rosto. Permaneceu estático durante alguns segundos, de olhos esbugalhados a espreitar entre os dedos. Então avançou para o lavatório e abriu a torneira. Escrutinou meticulosamente a pele, poro a poro. Depois lançou-lhe chapadas de água e esfregou, ora de um lado ora do outro, com as unhas e a escova. Nada. Nem sinais de tinta ou de qualquer maquilhagem. A pigmentação era real e definitiva.
Passou à sala e sentou-se no sofá, a digerir a situação. Com um pressentimento, ligou a televisão. Pois bem, ali estava a confirmação: em todos os canais que percorreu, locutores, animadores, entrevistados e transeuntes, políticos, artistas e comentadores, personalidades e cidadãos anónimos – todos sem excepção, mesmo os animais - mostravam quão drástica fora a transformação. Da noite para o dia, sem qualquer aviso ou explicação. Eram agora bicolores, o verde e o vermelho estampados nos rostos (apenas nos rostos, felizmente).
Mas ninguém, estranhamente, pelo menos na televisão, parecia preocupar-se com o assunto. Acontecera, pura e simplesmente, como a chuva ou os engarrafamentos. Pele óbvia e quotidiana como a anterior. Só ele se dava conta da metamorfose, ainda preso na memória de um rosto que fora pálido e triste, quase anémico.
Espreitou pela janela e viu pessoas na paragem do autocarro. À distância, era visível a mudança. Ninguém escapara. Olhou o céu, ainda azul - o céu deles, caramba, o tão celebrado azul português – e estremeceu. Algo lhe dizia que o processo ainda não terminara. Suspirando, voltou a meter-se na cama e ligou o rádio (o som, ao menos, não tem cor). Puxou o lençol para cima e sorriu. Talvez fosse um sonho, apenas um sonho, de que era preciso acordar. Fechou os olhos e sorriu. Era isso mesmo, apenas um sonho.
Virou-se na cama, de costas para o rádio, no preciso momento em que o mostrador amarelo-manga desmaiado começou a piscar, tornando-se mais luminoso. Gradualmente, duas cores ganharam vida e horizontalmente o cindiram: superior, o FM desviou-se para o vermelho; por baixo, o AM para o verde complementar.
Hall of Fame
Lamento, mas só agora me dei conta: David Bradley, o programador que escreveu o código inicial da célebre sequência "Ctrl+Alt+Delete" reformou-se ao fim de 29 anos na IBM. Obrigadinho, pá.
A História nos absolverá
Os funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SE&F) que entrarem em greve antes ou durante o Euro 2004 poderão ser substituídos por escoteiros. A proposta está em cima da mesa de DB, ao que parece deixada por mão anónima na noite de sábado para domingo.
Fontes governamentais desmentem qualquer envolvimento de MM no assunto, embora o próprio ministro tenha laconicamente admitido, durante os trabalhos parlamentares, que "o Escotismo é uma actividade complementar da escola e da família, preenchendo as lacunas deixadas por ambas as instituições".
Certo é que, perante esta possibilidade, o site oficial da Associação de Escoteiros tem registado um grande número de acessos e de preenchimento de formulários on line. A direcção da Associação diz-se disposta a colaborar com as autoridades, hoje como sempre: "Temos trabalhado com amigos, vizinhos, membros responsáveis da comunidade e outras organizações. Por que haveríamos de rejeitar uma nova parceria"?
O impacto dessa eventual substituição na segurança das fronteiras é difícil de avaliar. A juventude e inexperiência destes voluntários poderão ser compensadas pela sua enorme boa vontade e abnegação, espírito de corpo e sentido do dever. "O espírito é esse, mas não chega. Também é preciso tomates" - confessa um assessor governamental que não quis ser identificado. Por isso, responsáveis na área da segurança admitem que, além da colaboração dos escoteiros, não seria de excluir a requisição civil dos porteiros dos bares. "Há ali muito saber, muito ex-comando, gente bastante generosa", assegura-nos um deputado da maioria, mostrando com orgulho a tatuagem que se lhe enrola no braço direito.
Por sua vez, profissionais em actividade na zona da 24 de Julho, também em Lisboa, dizem-se dispostos a aceitar o desafio: "Quisemos ir para o Iraque, mas não nos deixaram. Talvez esta oportunidade sirva para limpar de uma vez por todas o nosso nome e a nossa imagem. Ainda que não seja por esta ordem. E até teremos muito prazer em trabalhar com malta nova, coisa a que estamos bem habituados na nossa profissão".
A única limitação à participação dos porteiros é que estes profissionais apenas operam de noite, o que obrigaria os escoteiros a fazer turnos mais exigentes. Alertados pelos filhos, alguns pais, igualmente escoteiros, mostraram-se apreensivos com o timing escolhido: "O meu filho tem a chave de casa desde os 13, mas não posso permitir que isso lhe venha estragar a época de exames", afirmou um progenitor exaltado à saída de um encontro de Associações de Pais com o ministro da Educação. "Mudar as datas de exames será difícil", reconheceu o ministro. O responsável da Administração Interna, que passava ocasionalmente, assentiu: "Isto é como os fogos, só podem ser no Verão".
Todavia, mesmo que o Governo venha a optar pelos escoteiros, coloca-se o problema da sua formação, tornada urgente pela proximidade do Euro 2004. O Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) surge assim como a única opção de DB, cabendo ao ministro da tutela, BF, desencadear a rápida reconversão do instituto. Sabe-se, para já, que uma proposta de novo logotipo está a ser seriamente encarada pelo governo. Devido à contenção de custos, a sigla manter-se-á, embora o IEFP passe a denominar-se, provisoriamente, Instituto de Estrangeiros e Fronteiras Portuguesas.
Fontes governamentais desmentem qualquer envolvimento de MM no assunto, embora o próprio ministro tenha laconicamente admitido, durante os trabalhos parlamentares, que "o Escotismo é uma actividade complementar da escola e da família, preenchendo as lacunas deixadas por ambas as instituições".
Certo é que, perante esta possibilidade, o site oficial da Associação de Escoteiros tem registado um grande número de acessos e de preenchimento de formulários on line. A direcção da Associação diz-se disposta a colaborar com as autoridades, hoje como sempre: "Temos trabalhado com amigos, vizinhos, membros responsáveis da comunidade e outras organizações. Por que haveríamos de rejeitar uma nova parceria"?
O impacto dessa eventual substituição na segurança das fronteiras é difícil de avaliar. A juventude e inexperiência destes voluntários poderão ser compensadas pela sua enorme boa vontade e abnegação, espírito de corpo e sentido do dever. "O espírito é esse, mas não chega. Também é preciso tomates" - confessa um assessor governamental que não quis ser identificado. Por isso, responsáveis na área da segurança admitem que, além da colaboração dos escoteiros, não seria de excluir a requisição civil dos porteiros dos bares. "Há ali muito saber, muito ex-comando, gente bastante generosa", assegura-nos um deputado da maioria, mostrando com orgulho a tatuagem que se lhe enrola no braço direito.
Por sua vez, profissionais em actividade na zona da 24 de Julho, também em Lisboa, dizem-se dispostos a aceitar o desafio: "Quisemos ir para o Iraque, mas não nos deixaram. Talvez esta oportunidade sirva para limpar de uma vez por todas o nosso nome e a nossa imagem. Ainda que não seja por esta ordem. E até teremos muito prazer em trabalhar com malta nova, coisa a que estamos bem habituados na nossa profissão".
A única limitação à participação dos porteiros é que estes profissionais apenas operam de noite, o que obrigaria os escoteiros a fazer turnos mais exigentes. Alertados pelos filhos, alguns pais, igualmente escoteiros, mostraram-se apreensivos com o timing escolhido: "O meu filho tem a chave de casa desde os 13, mas não posso permitir que isso lhe venha estragar a época de exames", afirmou um progenitor exaltado à saída de um encontro de Associações de Pais com o ministro da Educação. "Mudar as datas de exames será difícil", reconheceu o ministro. O responsável da Administração Interna, que passava ocasionalmente, assentiu: "Isto é como os fogos, só podem ser no Verão".
Todavia, mesmo que o Governo venha a optar pelos escoteiros, coloca-se o problema da sua formação, tornada urgente pela proximidade do Euro 2004. O Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) surge assim como a única opção de DB, cabendo ao ministro da tutela, BF, desencadear a rápida reconversão do instituto. Sabe-se, para já, que uma proposta de novo logotipo está a ser seriamente encarada pelo governo. Devido à contenção de custos, a sigla manter-se-á, embora o IEFP passe a denominar-se, provisoriamente, Instituto de Estrangeiros e Fronteiras Portuguesas.
Prolegómenos à crítica da lucidez pura
Vai devagar a leitura. Lamento, mas nunca será um tu-cá-tu-lá com esta escrita. Há apreço, certamente, mas também um certo desconforto - e fiquemos por aqui.
Coisas que hoje, janela de oportunidade aberta a livro fresco, incendiaram uns bons dez minutos trocados em reflexões sobre... marketing literário: "nunca foi escrito um livro assim", declarava candidamente o autor à TSF, deixando no ar uma ansiosa ameaça de polémica e terrível escândalo na cidade.
Não aguentei a espera e fui ver.
(algumas páginas depois)
Esquivo-me, com um sorriso de través, às primeiras pinceladas. Grossas, por sinal. Vou cuidadoso, mas não seguro. Até que (já o esperava, mas sem saber como), tudo se estraga num detalhe de modernidade funcional. Directo ao estômago, simplesmente imperdoável. E assim lhe perco o respeito em que zelosamente se vinha equilibrando a minha expectativa desde a livraria da Baixa. Na página 18, ao fundo.
Na página 18, ao fundo, o senhor da esquerda, do partido da dita (p.d.e.), é o único representante político na mesa de voto que não se acha feliz proprietário de um telemóvel. Para personagem ou para representante, não será este um bom princípio, tanto mais que qualquer coisa de terrível se prepara sob o dilúvio (mas não de votos) que arruina o dia de eleições.
Muito bem, nada a opor. Os outros falam pelos cotovelos (o do meio e o da direita, falo dos partidos): falam para casa, para a mulher, para os amigos. Sussurram, coisa rara em gente assim armada até aos dentes. Provavelmente enviam sms. E jogam à memória ou vão confinando a serpente, enquanto esperam pelos eleitores (e ninguém vai lendo o jornal?).
Mas, ao canto (travelling para a frente), arredado do convívio dos seus - do partido, da família na província, mesmo do mundo - o desamparado p.d.e. permanece mudo. Ali, é apenas zero (os outros são uns-e-zeros). Supostamente (!), rumina ódios de classe (close-up), o jantar pesado da véspera ou simples saudades da terra. Só o futuro o dirá. E o futuro, por enquanto, fica tão longe quanto a página 19.
Sendo estatisticamente admissível tamanha adversidade, reina aqui um realismo atroz. Bastaria um pouco de caridade: não que se lhe entregasse, caramba, um aparelho da 3ª geração, há na Mouraria material em conta por onde escolher.
Posto assim, o homem da esquerda vai nu. No entanto, espantar-me-ia menos que o insólito mandatário se apresentasse a cumprir a cívica função desprovido, digamos, da cabeça. Palavra. Ou que dissertasse efusivamente, de pé na cadeira, sobre algoritmos evolutivos ou as singularidades de uma rapariga loira.
Dou de barato a trindade dominical reunida à boca das urnas - o p.d.e. , o p.d.m. e o p.d.d. – ardente visão da tripla segura, ganhadora no pódio daquilo que todos dizem que aí se ganha sempre: ouro, prata e bronze, além dos sinceros votos. Vai-se o “centrão” – eis o “triplão”.
Dou de barato o malicioso segundo arranjo trinitário: o Presidente abatido da mesa, a mulher ausente no cinema e a sogra presente no escrutínio (diligentemente explicando a omissão).
Dou de barato ainda o “pobre homem” (sic) - a esquerda humilde... - silencioso, sozinho (à Graça, na Ajuda ou no Desterro?) enfrentando a capital. E também a manifesta crueldade que o impede de se extraviar por dois minutos, a pretexto de um desarranjo, para lhe enfiar um bagaço ali mesmo à esquina.
De resto, tanto se me dá que lhe ponham uma samarra pelas costas, uma águia na lapela ou um pouco mais de azul lisnave nos olhos claros. Duas comissões na Guiné. Dois dedos a menos na mão esquerda. Ou um bigode à José Estaline. Que conte anedotas de alentejanos e fale alto. Que tenha os dentes todos. E um palito constitucional.
Não lhe tirem é o telemóvel – urbano, ágil e feliz compagnon de route de quem se quer lúcido e global. Esquerda sem rede? Talvez, afinal.
Coisas que hoje, janela de oportunidade aberta a livro fresco, incendiaram uns bons dez minutos trocados em reflexões sobre... marketing literário: "nunca foi escrito um livro assim", declarava candidamente o autor à TSF, deixando no ar uma ansiosa ameaça de polémica e terrível escândalo na cidade.
Não aguentei a espera e fui ver.
(algumas páginas depois)
Esquivo-me, com um sorriso de través, às primeiras pinceladas. Grossas, por sinal. Vou cuidadoso, mas não seguro. Até que (já o esperava, mas sem saber como), tudo se estraga num detalhe de modernidade funcional. Directo ao estômago, simplesmente imperdoável. E assim lhe perco o respeito em que zelosamente se vinha equilibrando a minha expectativa desde a livraria da Baixa. Na página 18, ao fundo.
Na página 18, ao fundo, o senhor da esquerda, do partido da dita (p.d.e.), é o único representante político na mesa de voto que não se acha feliz proprietário de um telemóvel. Para personagem ou para representante, não será este um bom princípio, tanto mais que qualquer coisa de terrível se prepara sob o dilúvio (mas não de votos) que arruina o dia de eleições.
Muito bem, nada a opor. Os outros falam pelos cotovelos (o do meio e o da direita, falo dos partidos): falam para casa, para a mulher, para os amigos. Sussurram, coisa rara em gente assim armada até aos dentes. Provavelmente enviam sms. E jogam à memória ou vão confinando a serpente, enquanto esperam pelos eleitores (e ninguém vai lendo o jornal?).
Mas, ao canto (travelling para a frente), arredado do convívio dos seus - do partido, da família na província, mesmo do mundo - o desamparado p.d.e. permanece mudo. Ali, é apenas zero (os outros são uns-e-zeros). Supostamente (!), rumina ódios de classe (close-up), o jantar pesado da véspera ou simples saudades da terra. Só o futuro o dirá. E o futuro, por enquanto, fica tão longe quanto a página 19.
Sendo estatisticamente admissível tamanha adversidade, reina aqui um realismo atroz. Bastaria um pouco de caridade: não que se lhe entregasse, caramba, um aparelho da 3ª geração, há na Mouraria material em conta por onde escolher.
Posto assim, o homem da esquerda vai nu. No entanto, espantar-me-ia menos que o insólito mandatário se apresentasse a cumprir a cívica função desprovido, digamos, da cabeça. Palavra. Ou que dissertasse efusivamente, de pé na cadeira, sobre algoritmos evolutivos ou as singularidades de uma rapariga loira.
Dou de barato a trindade dominical reunida à boca das urnas - o p.d.e. , o p.d.m. e o p.d.d. – ardente visão da tripla segura, ganhadora no pódio daquilo que todos dizem que aí se ganha sempre: ouro, prata e bronze, além dos sinceros votos. Vai-se o “centrão” – eis o “triplão”.
Dou de barato o malicioso segundo arranjo trinitário: o Presidente abatido da mesa, a mulher ausente no cinema e a sogra presente no escrutínio (diligentemente explicando a omissão).
Dou de barato ainda o “pobre homem” (sic) - a esquerda humilde... - silencioso, sozinho (à Graça, na Ajuda ou no Desterro?) enfrentando a capital. E também a manifesta crueldade que o impede de se extraviar por dois minutos, a pretexto de um desarranjo, para lhe enfiar um bagaço ali mesmo à esquina.
De resto, tanto se me dá que lhe ponham uma samarra pelas costas, uma águia na lapela ou um pouco mais de azul lisnave nos olhos claros. Duas comissões na Guiné. Dois dedos a menos na mão esquerda. Ou um bigode à José Estaline. Que conte anedotas de alentejanos e fale alto. Que tenha os dentes todos. E um palito constitucional.
Não lhe tirem é o telemóvel – urbano, ágil e feliz compagnon de route de quem se quer lúcido e global. Esquerda sem rede? Talvez, afinal.
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