os meus avós não acreditavam que os homens tivessem ido à lua. eu era miúdo e eles eram do campo, sentados à mesa como nota de rodapé do júlio dinis. não soube como provar-lhes que não tinham razões para duvidar. nessa altura, eu acreditava na televisão. eles não. hoje, penso que também deveria ter desconfiado. embora por razões diferentes. mas não seria o que sou agora. descrente.
passei muitas horas estirado na cama a ler a bíblia. lia uma versão para jovens, não para a criança que eu era. linguagem mais simples, menos temperada, mas fiel ao espírito original. as histórias dominavam-me. sobretudo as do antigo testamento. tinha pesadelos. tinha uma pilha para ler debaixo dos lençóis. tinha dores nos joelhos. crescia depressa, dizia o médico. faltava à escola de manhã por sonhar demais.
sonho que ando com a eva pelo jardim sem pensar na costela dorida. sonho que odeio o caim e o outro. sonho que adormeço à chuva com noé. é bom adormecer com chuva ao fundo. não são tão maus os irmãos do bom josé? os vilãos. a quadrilha selvagem. e david? david manda para a morte o general para lhe ficar com a mulher. não faças isso, ó david. não te vás embora, ó general. acho irritante a sabedoria de salomão, o presumido. o vaidoso. e a baleia devoradora de todos os jonas do mundo. como pesa a queixada de burro com que sansão matou mil inimigos no afeganistão. bolas. chego atrasado à abertura do mar vermelho, ao canal do suez. cumprimento o eça. bom dia, arafat. provo um canapé. é maná. sabe bem. job continua pobre ponto final. sabia? coma maná. olha o zacarias. o daniel. olha o césar monteiro. olha um profeta louco em cada esquina com os olhos brilhantes de asilo. gosto das saras e das rutes. gosto da raquel. todas mães aos setenta. todas barrigas de aluguer do médio-oriente. tudo velho, barbas brancas, sandálias calcando pó. o sol. a areia. o deserto antes de david lean. olha os carros todo-o-terreno do faraó. estão longe. estão cada vez mais perto. mais perto o yul brynner rapado atrás dos judeus. o nazi sua ao sol atrás do indiana de chicote. e chega charlton heston no seu melhor. traz as tábuas e a winchester. viva columbine e o bezerro de ouro. querem outro dilúvio? corte. yoda estende o dedo e separa a luz das trevas, as águas das terras, os peixes das aves. corta. miguel ângelo hesita colado ao tecto. o papa aproxima-se com gota e vai censurar o dedo brilhante de spielberg. corte. apaga-se a sarça, recolhe-se o mar, afoga-se moisés. corte para as torres gémeas de babel. um avião sobrevoa o templo. o santos dos santos. os sacerdotes apontam o voo picado. corte. bush ouve as crianças na sala de aula. corte. césar monteiro continua às voltas no principe real. negro. genérico. luzes. acordar. imprimir.
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