sorrir sempre

o senhor da loja da esquina anda metido com uma mulher. corre no bairro que não é a sua, a mesma que aos domingos o ajuda a fechar a semana de pés frios e consignações. a mulher anda com má cara. ele não. o senhor da esquina anda leve, cada vez mais leve, e passa o tempo aos segredos com o telemóvel. atrás do balcão mora um homem feliz.
ora isto tem consequências. está à vista que se desleixou na arrumação da montra, quando antes seguia religiosamente o calendário dos dias de qualquer coisa que se vendesse bem. por isso se engana no pacote de jornais que me entrega, nas contas e nos trocos. os clientes resmungam, pagam e saem para a concorrência. não há livro de reclamações. mas há pó nas prateleiras mais altas. à entrada, resistem os anúncios de gente que dá explicações.
o senhor da esquina começa a perturbar o bairro, o delicado equilíbrio da rotina do bairro. saímos da zona de conforto e aguardamos a tragédia. o café em frente, a cabeleireira em frente, a tasca da outra esquina. o comércio está apreensivo. a junta de freguesia já foi informada. mau sinal: o homem dos frangos deixou de meter conversa entre assaduras. e eu, resignado, já não comento as capas de gente famosa. se digo que está frio, ele sorri. se digo que vai chover, ele sorri. atrevo-me a dizer que se afundou a torre de belém. e ele sorri.

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