falem-me dos transaccionáveis
o meu tio aos 89 anos lembrou-se de perguntar por que razão tinha cada vez menos dinheiro no banco. por que razão havia mais gente desempregada e os espanhóis atravessavam a fronteira para vender cá deste lado o que os do lado de cá não produziam. coisas destas tão simples que um comentador despacha em cinco minutos no telejornal. depois dos 80 qualquer esclarecimento de balcão confunde um homem que acaba de colher a azeitona. à beira dos 90 qualquer falha dos mercados estraga o dia já arruinado por um poço que desabou. o meu tio tinha razão para estar abespinhado. com a azeitona no lagar a 26 cêntimos. com o gato que lhe mataram por maldade. com a minha tia a abalar de si própria ninguém sabe para onde. mas ele sabia onde eu trabalho. sabia bem o que perguntava. inclinou-se para a frente como só os moucos se inclinam quando querem ouvir-se a perguntar. um esgar de sorriso velho e malicioso. à beira de uma epifania. ora vê lá se sais desta. não o disse mas pensou. eu quis sair mas é pela porta. pedir um chá. comer bolachas moles. saber da última excursão a fátima. fiquei imóvel no papel do sobrinho estimado. então descruzei as pernas. inclinei-me também e pedi que repetisse. perguntei porquê só para ganhar tempo. para rebuscar tralha acumulada no mais escuro sótão de ideias feitas. repetiu a pergunta já com o eco da minha tia a ajudar à missa. tu é que sabes disso. a gente estamos velhos. a gente estamos sem cabeça. eu estupidamente disse que não estavam velhos. que tinham cabeça. que eram avós de woodstock. e senti-me velho de repente. eu não sei nada disso. não o disse mas pensei. que seria mais fácil explicar as regras do sudoku a um camarão cozido. a falência das grandes narrativas a um corta-unhas. piedade meu tio. piedade minha tia. eu sou uma correia da engrenagem. mentalmente ajoelhei aos pés de todas as virgens negras. uma mola inofensiva do sistema. um acessório do marketing do euro. o fórum de davos numa travessa de alcântara. o portugal dos pequeninos numa nota só. eu não tenho culpa. eu não sou tóxico. eu sou o subprime de mim mesmo. eu não roubei nada. eu nunca fui o retorno absoluto. a dívida soberana. os futuros dos amanhãs que cantam. eu reprovo os mercados e as agências de rating. as agências de rating são uma invenção da oprah e do jon stewart. eu escarro nos swaps de cds. nos derivados de wall street. eu evito a city e o nasdaq. os soros e os madoffs que se concubinem. eu sou o vosso sobrinho. estão a ver? o vosso sobrinho. vão ao banco e espanquem o gerente. eu ajudo. levantem o dinheiro. a tia que faça um lifting. o tio que vá a um spa. gozem a velhice. vejam o goucha. elejam o cavaco. vão a fátima e a nossa senhora de lurdes. caguem na prudência. adiram ao catching up. uma rave no meio do faval. um rap por conta das geadas. mas não me culpem. eu sei. nascidos pobres para morrer pobres. nascidos brutos para morrer brutos. nascidos tios para este sobrinho. ó tios meus. ó minha santa ignorância. já viram o frio que está?
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