Entrou silencioso, fechando a porta com o calcanhar. Ainda se ouvia o táxi a soluçar pela rua acima.
Acendeu e logo apagou a luz da sala, como a certificar-se da ordem reinante. Avançou para o corredor e, no último momento, mesmo antes de desaparecer à esquina, lançou o casaco num voo parabólico de chaves e moedas a tilintar pelo espaço. Algures na escuridão, o gato miou vagamente.
Já no quarto, estacou. Doíam-lhe os pés, estava rouco de tanto fumar. Num movimento lento, girou sobre os calcanhares como um boneco desarticulado e desabou para trás, sobre o cadeirão, esmagando as almofadas num sopro delicioso de ar fresco e aveludado.
Deixou-se afundar, de braços armados e mãos abertas dependuradas sem vontade. Escoando-se por entre as persianas, a palidez da madrugada revelava uma forma imprecisa ao lado da cama. Ronronava baixinho. Ficou a olhá-la durante algum tempo.
Depois, atirou a perna direita num movimento brusco, o sapato desprendeu-se num estranho ângulo e subiu, rodando graciosamente sobre si próprio, até aterrar em cima do armário. Com o dedo grande já livre, descalçou o outro sapato. Espreguiçou-se num longo e ruidoso bocejo. Maquinalmente, estendeu o braço e tirou o cigarro que espreitava do maço sobre a mesa ao lado. Não encontrou o isqueiro.
Levantou-se, o cigarro entre lábios, e saiu. Ouviu-se água a correr, o trabalho da escova nos dentes, novamente água a correr e, finalmente, um gargarejar lírico e complicado. No quarto, o ronronar tornara-se mais agudo, quase uma melodia.
Voltou já de pijama e cigarro aceso. Levantou um pouco a persiana e entreabriu a janela.
Deu a volta à cama, debruçou-se sobre o vulto e premiu um botão. Ouviu-se um leve assobio de chaleira. Escreveu a dois dedos. O visor iluminou-se, passando de verde-alface a azul cobalto, e dois grandes olhos amendoados formaram-se lentamente, pestanejando o acordar. A máquina pigarreou, tossiu estática e acabou por fazer ouvir uma quase Kathleen Turner electrónica:
- Bom dia, John. Hoje trabalhaste até tarde...
* recuperado de 1993
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