os baixos lá de casa eram o lugar da carnificina pascal. estou para perceber como se escolhia a vítima e porquê, a sabedoria do povo ainda me confunde e inquieta. confortava-me a sorte de não ter nascido borrego, embora considerasse a hipótese disparatada.
às tantas deixaram-me ter acesso ao espectáculo, o mais tranquilo que alguma vez presenciei. o meu tio tinha ares de profissional. o golpe brusco e certeiro no pescoço do animal, era apenas aí que eu disfarçava um estremecimento de horror, produzia um efeito especial, som de ar que se escapa e lamento de surpresa, de perdão?, pelo gesto cruel. às vezes pensava que íamos ser castigados por isso, que fazíamos qualquer coisa proibida. sentia-me fascinado e triste, mas não cúmplice. e normalmente enjoado pelo cheiro morno do sangue que ia enchendo a celha de barro. a minha avó traçava uma cruz na superfície fumegante e todos estávamos em silêncio. achava indigno que já não se pudesse voltar atrás, mesmo se quiséssemos.
penso que odiava esse tio naqueles instantes, desejava-lhe mal. cheguei mesmo a desconfiar que já teria matado homens ou era capaz de o fazer. mas desculpava-o. por ignorância e por ser meu tio.
vi matar muita coisa, já crescido, principalmente na televisão. há poucos anos assisti a tudo com o interesse cretino do repórter. fiz perguntas, tirei fotografias ao cabrito, o antes e o depois, e até segurei a pele esticada para o lado a fim de soltar um saco acizentando a rebentar de vísceras. tenho para ali as fotografias e julgo que podiam ser ampliadas pelas ruas e colinas de lisboa ou revestir o parlamento.
o meu tio já não mata e está morto e eu guardo religiosamente o longo formão de cabo de madeira. o bico afiado continua reluzente. os cordeiros continuam de deus.
* recuperado de 1995
1 comentário:
Também vivi estas mortes. Calada. Cosida na minha incompreensão infantil
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