Vai devagar a leitura. Lamento, mas nunca será um tu-cá-tu-lá com esta escrita. Há apreço, certamente, mas também um certo desconforto - e fiquemos por aqui.
Coisas que hoje, janela de oportunidade aberta a livro fresco, incendiaram uns bons dez minutos trocados em reflexões sobre... marketing literário: "nunca foi escrito um livro assim", declarava candidamente o autor à TSF, deixando no ar uma ansiosa ameaça de polémica e terrível escândalo na cidade.
Não aguentei a espera e fui ver.
(algumas páginas depois)
Esquivo-me, com um sorriso de través, às primeiras pinceladas. Grossas, por sinal. Vou cuidadoso, mas não seguro. Até que (já o esperava, mas sem saber como), tudo se estraga num detalhe de modernidade funcional. Directo ao estômago, simplesmente imperdoável. E assim lhe perco o respeito em que zelosamente se vinha equilibrando a minha expectativa desde a livraria da Baixa. Na página 18, ao fundo.
Na página 18, ao fundo, o senhor da esquerda, do partido da dita (p.d.e.), é o único representante político na mesa de voto que não se acha feliz proprietário de um telemóvel. Para personagem ou para representante, não será este um bom princípio, tanto mais que qualquer coisa de terrível se prepara sob o dilúvio (mas não de votos) que arruina o dia de eleições.
Muito bem, nada a opor. Os outros falam pelos cotovelos (o do meio e o da direita, falo dos partidos): falam para casa, para a mulher, para os amigos. Sussurram, coisa rara em gente assim armada até aos dentes. Provavelmente enviam sms. E jogam à memória ou vão confinando a serpente, enquanto esperam pelos eleitores (e ninguém vai lendo o jornal?).
Mas, ao canto (travelling para a frente), arredado do convívio dos seus - do partido, da família na província, mesmo do mundo - o desamparado p.d.e. permanece mudo. Ali, é apenas zero (os outros são uns-e-zeros). Supostamente (!), rumina ódios de classe (close-up), o jantar pesado da véspera ou simples saudades da terra. Só o futuro o dirá. E o futuro, por enquanto, fica tão longe quanto a página 19.
Sendo estatisticamente admissível tamanha adversidade, reina aqui um realismo atroz. Bastaria um pouco de caridade: não que se lhe entregasse, caramba, um aparelho da 3ª geração, há na Mouraria material em conta por onde escolher.
Posto assim, o homem da esquerda vai nu. No entanto, espantar-me-ia menos que o insólito mandatário se apresentasse a cumprir a cívica função desprovido, digamos, da cabeça. Palavra. Ou que dissertasse efusivamente, de pé na cadeira, sobre algoritmos evolutivos ou as singularidades de uma rapariga loira.
Dou de barato a trindade dominical reunida à boca das urnas - o p.d.e. , o p.d.m. e o p.d.d. – ardente visão da tripla segura, ganhadora no pódio daquilo que todos dizem que aí se ganha sempre: ouro, prata e bronze, além dos sinceros votos. Vai-se o “centrão” – eis o “triplão”.
Dou de barato o malicioso segundo arranjo trinitário: o Presidente abatido da mesa, a mulher ausente no cinema e a sogra presente no escrutínio (diligentemente explicando a omissão).
Dou de barato ainda o “pobre homem” (sic) - a esquerda humilde... - silencioso, sozinho (à Graça, na Ajuda ou no Desterro?) enfrentando a capital. E também a manifesta crueldade que o impede de se extraviar por dois minutos, a pretexto de um desarranjo, para lhe enfiar um bagaço ali mesmo à esquina.
De resto, tanto se me dá que lhe ponham uma samarra pelas costas, uma águia na lapela ou um pouco mais de azul lisnave nos olhos claros. Duas comissões na Guiné. Dois dedos a menos na mão esquerda. Ou um bigode à José Estaline. Que conte anedotas de alentejanos e fale alto. Que tenha os dentes todos. E um palito constitucional.
Não lhe tirem é o telemóvel – urbano, ágil e feliz compagnon de route de quem se quer lúcido e global. Esquerda sem rede? Talvez, afinal.